Empresários aterrissam em favela que simboliza corrida contra pobreza

'Missão Marte', da ONG Gerando Falcões, usa narrativa espacial para levar 120 visitantes para conhecer projeto pioneiro no interior de São Paulo

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São José do Rio Preto (SP)

"Há vida em Marte", anuncia Edu Lyra aos 120 passageiros e tripulantes a bordo do avião que está prestes a levantar vôo do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, às 9h50 deste sábado (19). "Mas lá não tem água potável e falta o básico para viver."

No caso, o Planeta Vermelho é uma favela em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, que encabeça a narrativa espacial criada pelo fundador da ONG Gerando Falcões.

Convidados da ONG Gerando Falcões caminham com Edu Lyra na Favela Marte, em São José do Rio Preto
Convidados da ONG Gerando Falcões caminham com Edu Lyra na Favela Marte, em São José do Rio Preto - Divulgação/Gerando Falcões

Em Marte, a 400 km da capital paulista, vivem 673 pessoas, em uma área equivalente a seis campos de futebol, repleta de moradias precárias e esgoto a céu aberto. Crianças, galinhas, cães sujos de barro, motos e lixo acumulado dividem o mesmo espaço.

É para ver a pobreza extrema de perto que o grupo de empresários, influenciadores e articuladores sociais foi convidado para um dia de imersão.

A missão é conhecer o Favela 3D — de "digna, digital e desenvolvida"— projeto-piloto para interromper o ciclo de miséria e ser modelo para outras comunidades no país.

No embarque, um ator negro fantasiado de astronauta deu as boas-vindas aos viajantes. A aeronave, fretada com apoio da Latam, acomodou executivos como Leonardo Framil (CEO da Accenture), Paula Bellizia (CEO do Ebanx) e Guilherme Horn (head de operações do WhatsApp no Brasil) e personalidades como Jorge Melguizo, ex-secretário de Cultura de Medellín (Colômbia) e o influenciador digital Murilo Duarte, o Favelado Investidor.

homem negro vestido de astronauta levanta mão em saguão de aeroporto
Ator personificou astronauta para dar boas-vindas aos passageiros da Missão Marte, que partiu do aeroporto de Congonhas (SP) - Divulgação/Latam

"Estou trazendo a sociedade para ver como é a pobreza que domina o território hoje. Daqui a um ano e meio, todo mundo volta para ver a transformação", promete Edu na largada.

Ao aterrissar, a primeira visão que os tripulantes têm dos "marcianos" são jovens com vestidos coloridos. E o primeiro som vem dos tambores: "Uma mulher que merece viver e amar / como outra qualquer do planeta". Elas cantam "Maria, Maria", de Milton Nascimento.

São as co-fundadoras do Valquírias World, instituto de São José do Rio Preto que oferece oportunidades para meninas, mulheres e seus filhos, uma das organizações que integra a rede Gerando Falcões.

Bianca Franco, 20, é uma das primeiras beneficiárias do Valquírias, e hoje dá aulas de meditação, cursa Pedagogia e lidera um projeto de segurança alimentar. E fala com serenidade sobre seu passado.

menina loira de cabelos enrolados sorri
Bianca Franco, 20, é uma das beneficiárias que se tornou co-fundadora do Instituto Valquírias World - Divulgação/Gerando Falcões

"Quando cheguei aqui, aos 11, minha mãe estava presa e meu pai e padrasto foram assassinados."

Bianca morava com uma amiga de sua mãe numa favela dominada pelo tráfico de drogas e pela prostituição. Conta que o tambor transformou sua vida. "Escutei o som e conheci o grupo musical das Valquírias. Foi aqui que eu floresci."

Depois da chuva no começo da tarde, o chão de terra batida deu à Favela Marte contornos do planeta vermelho.

No meio do ano, todas as casas serão demolidas. O governo de São Paulo se comprometeu com a construção de 240 moradias por meio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU). Haverá obras para distribuição de água, esgoto, iluminação e pavimentação pública.

casas precárias na favela
Detalhe de moradias da Favela Marte, comunidade que recebe projeto-piloto para erradicar pobreza no interior de São Paulo - Divulgação/Gerando Falcões

O líder comunitário Benvindo Nery e Amanda Oliveira, fundadora do Valquírias World, apresentam o "plano de decolagem familiar", abordagem sistêmica para atacar problemas individuais na superação da pobreza.

No programa Avança Marte, por exemplo, mulheres e mães discutem seus direitos com uma assistente social. "Chorei do começo ao fim com as histórias", diz uma das participantes.

"Eu não consigo ir sempre porque preciso levar as crianças na creche, depois vou limpar a casa. Mas gosto porque não tenho ninguém para desabafar", diz uma jovem de 19 anos, grávida de seu primeiro filho.

No Luz de Marte Barraco Terapêutico, o foco é cuidar da saúde mental de pessoas em situação de extrema pobreza e de dependentes químicos. "É um espaço para elaborar internamente, curar feridas, reparar laços perdidos com suas famílias", diz o psicólogo social Maicon Vijarva.

Um grupo de crianças pequenas meditando no chão é uma miragem que a Favela Marte oferece aos expedicionários, que tiram fotos, aplaudem e se emocionam. Elas também contam com aulas de dança, arte e esportes.

crianças dançam em favela, há um cachorro e adultos de plateia
Crianças da Favela Marte têm aulas de dança e oficinas de arte em projeto-piloto da ONG Gerando Falcões - Divulgação/Gerando Falcões

"Temos um problema social crônico no Brasil e este é um piloto poderoso para a transformação que precisamos fazer", diz Otto Baumgart, diretor corporativo do Grupo Baumgart.

Ele explica que mobilizou empresas do setor de construção civil para apoiar o projeto. "Temos responsabilidade de levantar recursos em nossas redes, tocar as pessoas para construir pontes e reduzir a desigualdade social", completa.

O acordo orquestrado pela Gerando Falcões com governo, prefeitura e empresas levantou R$ 58 milhões para o Favela 3D, dos quais R$ 15 milhões foram arrecadados por Lyra junto à iniciativa privada. Outros R$ 15 milhões serão aportados pela prefeitura local.

projeto de casas
Projeto de como ficará a Favela Marte, que se torna bairro, após projeto da ONG Gerando Falcões - Divulgação/Boldarini Arquitetos

"O poder público não faz nada sozinho", afirma Edinho Araújo (MDB), prefeito de São José do Rio Preto em visita à comunidade. "Tenho pés no chão porque sou executivo, mas às vezes temos que ser utópicos. Por isso, atores sociais como Edu Lyra têm papel fundamental nesse trabalho coletivo."

Mas por que, dentre as 14 mil favelas brasileiras, foi esta a escolhida para engrenar a narrativa espacial?

"Liderança. Esta favela tem um histórico de luta e nunca aceitou a derrota", diz Edu, que foi criado pela mãe em uma favela de Guarulhos (SP) e virou exemplo de superação da pobreza. "Nós também vamos vencer aqui."

Outras comunidades avançam na corrida social que pretende levar prosperidade para favelas antes da colonização do planeta Marte por Elon Musk. O morro da Providência (RJ) e a favela Boca do Sapo, em Ferraz de Vasconcelos (SP), estão em estágios adiantados no programa, que conta com modelo sofisticado de gestão de dados.

Na despedida da Missão Marte, ficou entre os convidados a sensação de que um pequeno passo foi dado diante do enorme desafio social que o país enfrenta. Mas os resultados, daqui a um ano e meio, podem simbolizar um grande passo para a humanidade.

"Teremos aqui uma fábrica de cidadania, vamos garantir direitos a essas crianças. É possível construir outra sociedade", aposta o colombiano Jorge Melguizo.

*A repórter Gabriela Caseff viajou a convite da Gerando Falcões.

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