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Amamentar pode se tornar 'pesadelo sensorial' para mães autistas

Nos EUA, escassez de fórmula infantil afetou de forma intensa esse grupo

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Shafaq Zia
The New York Times

Wendy Graves estava cada vez mais preocupada, até apavorada. Antes mesmo de a mídia começar a noticiar uma escassez aguda de fórmula infantil nos Estados Unidos, no início de maio, ela já havia voltado de duas idas ao supermercado de mãos vazias.

Graves, que é autista e particularmente sensível ao toque, depende da fórmula infantil desde que teve sua filha, em 2018. Inicialmente ela pretendia amamentar a bebê, mas mudou de ideia quando a consultora de lactação do hospital tocou seus seios sem avisá-la antes.

Sua filha, que agora tem quatro anos, também é autista e não come muita a coisa a não ser macarrão e legumes cortados em palitos. Para suprir suas necessidades nutricionais, Graves precisa comprar seis latas de fórmula hipoalergênica por mês.

amamentação autismo
Mães com autismo podem ter mais dificuldade para amamentar - NYT

Mas esse tipo especial tem estado particularmente em falta, obrigando-a a dirigir por horas de sua casa em Hope, Arkansas, para chegar a alguma loja que tenha algumas latas no estoque. Graves chegou a pedir ajuda a seus amigos, familiares e pessoas que ela não conhece pessoalmente, participantes de grupos do Facebook de apoio a pais neurodivergentes, para lhe comprar e enviar o que puderem.

"Estou numa enrascada, e a situação só está piorando", comentou. "Já tive que pagar centenas de dólares adicionais para cobrir o transporte, só para conseguir a fórmula da qual minha filha depende."

A crise da escassez de fórmula infantil começou há meses, e milhões de famílias americanas ainda estão em situação difícil. De acordo com a empresa de pesquisas de mercado IRI, em meados de setembro ainda faltavam 19% para as lojas terem um estoque completo de fórmulas de bebê. As mães autistas, que têm probabilidade menor de amamentar seus filhos, têm sido especialmente afetadas.

Numa revisão recente, pesquisadores britânicos identificaram várias razões que explicam a baixa taxa de mulheres autistas que amamentam seus filhos. Para algumas delas, ser mãe significa ter menos controle sobre sua rotina, levando a um risco aumentado de ansiedade e depressão. Os serviços de lactação raramente são adaptados para pessoas autistas, e isso leva a situações incômodas que podem desencorajar mulheres como Wendy Graves, que também tem a síndrome de Ehlers-Danlos, uma doença rara do tecido conjuntivo.

"Já é difícil para a mãe branca de classe média, que mesmo assim não está recebendo apoio suficiente", disse Aimee Grant, pesquisadora da Universidade de Swansea, que ajudou a redigir a revisão. "Quando somamos as barreiras extras, como ser autista e fazer parte de um grupo marginalizado, os problemas se agravam."

Grant pesquisa aleitamento materno há anos. Em 2019, decidiu estudar mães autistas, após ela própria receber o diagnóstico.

Segundo pesquisadores, um dos obstáculos mais comuns para as mães autistas é sua sensibilidade ao toque. A amamentação é uma experiência física intensa. Um bebê esfomeado, aconchegado contra o peito da mãe, pode chutar ou agitar seus punhos e então abocanhar um bico do seio que já está dolorido e inchado.

Essas sensações são incômodas e dolorosas para muitas mulheres, mas a sensibilidade aumentada das mães autistas pode converter a amamentação em um "pesadelo sensorial", segundo Jane Wilson, professora de enfermagem na Palm Beach Atlantic University e especialista em saúde materna e infantil.

Em 2020, Wilson e uma colega, Bri Andrassy, conduziram um pequeno estudo sobre as experiências de mães autistas de todo o mundo com a amamentação. Elas entrevistaram 23 mulheres autistas, 14 das quais viviam nos Estados Unidos, fazendo uma pergunta apenas: "Pode nos falar de sua experiência de amamentação?"

A maioria das mulheres falou que o contato físico durante a amamentação era excessivo para elas. Estudos já mostraram que as pessoas autistas vivenciam sinais corporais –como arrepios, barriga tensa ou bexiga cheia— diferentemente das pessoas não autistas. Algumas das mulheres no estudo de Wilson só sentiam dor quando seus mamilos já estavam sangrando. Outras, porém, tinham sinais corporais hiperativos, tornando o ato da amamentação incrivelmente doloroso.

Sam, uma mulher de 40 anos de Washington, teve dificuldade em produzir leite suficiente depois de dar à luz sua filha. A especialista em lactação a aconselhou a bombear leite regularmente. Mas a bomba fria e dura, além do barulho rítmico alto que emitia, eram insuportáveis para ela.

O impacto do estresse gerado pela bomba de leite não era apenas psicológico: afetava o volume de leite que Sam conseguia produzir depois de 30 minutos bombeando. "Às vezes eu olhava e tinha vontade de chorar", disse ela, que pediu para que seu sobrenome não fosse informado. "Não dava nem para encher um copinho para uma dose de bebida."

Quando sua filha tinha cinco meses, os médicos aconselharam que Sam lhe desse uma fórmula hipoalergênica para ajudá-la a ganhar peso. Ela ainda tentou continuar amamentando ocasionalmente, mas sentiu tristeza intensa por não conseguir alcançar suas metas de lactação.

Para melhorar a experiência dessas mães, especialistas disseram que as profissionais que prestam atendimento a lactantes deveriam, idealmente, receber treinamento de uma pessoa autista em como comunicar-se com mães autistas. Mesmo considerações simples podem fazer uma grande diferença, disseram –medidas como nunca tocar os seios de uma mãe sem pedir permissão ou suavizar a iluminação forte do quarto de hospital.

Os pesquisadores também têm conselhos a dar a pessoas autistas que esperam um filho. Falar com uma consultora de lactação antes do parto pode diminuir a ansiedade em torno da amamentação. Algumas mães também podem sentir-se reconfortadas se puderem fazer contato com outras mães autistas que optam por amamentar.

Jay Eveson-Egler e Tayler Egler são autistas e terão uma filha em outubro. As duas vêm se preparando há meses com a ajuda de uma equipe de profissionais especializados em aconselhar indivíduos neurodiversos com parto, amamentação e depressão pós-parto. Mas a escassez de fórmula infantil as está levando a sentirem ansiedade e incerteza.

Eveson-Egler, que está gestando o feto, prevê que sentirá sobrecarga sensorial quando amamentar e achou que a fórmula infantil serviria de auxílio. Com esse apoio comprometido devido à escassez de fórmula no comércio, ela vem tendo pesadelos recorrentes sobre não conseguir cuidar corretamente da bebê.

Devido às circunstâncias incertas, Egler, que é mais sensível a estímulos sensoriais que Eveson-Egler, começou mesmo assim a tomar medicamentos para induzir a lactação. Ambas as mães estão determinadas a amamentar a filha, a despeito de suas dificuldades sensoriais.

"Muita gente pensa que pessoas autistas são podem ser boas mães ou sequer são capazes de ser mães", disse Egler. "Precisamos de mais compreensão por parte do sistema médico."

Tradução de Clara Allain

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