Meu filho tem mesmo transtorno mental? Quando o diagnóstico é real ou exagerado

Aumento no diagnóstico de condições como autismo e TDAH em crianças exige cautela, alertam especialistas

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São Paulo

Meu filho não para quieto. Ou fica quieto até demais. Está demorando a falar, como não comparar com a bebê da vizinha, que é mais nova e não fecha a matraca? Será que ele tem algum transtorno mental?

A probabilidade de essa resposta ser sim dilatou um bocado nos últimos anos. Pesquisas apresentam variações, mas um dado do CDC (agência americana de controle de doenças) exemplifica bem essa expansão. Em 2020, 1 em cada 36 crianças de até 8 anos recebia a classificação de autismo nos Estados Unidos, enquanto a proporção era de 1 a cada 150 em 2000.

Essa rede passa por desordens de fundo ora genético, ora ambiental, como o próprio TEA (Transtorno do Espectro Autista) e o TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). Outro quadro em ascensão é o TOD (Transtorno Opositor Desafiador), muito confundido com comportamentos típicos desses primeiros anos de vida —os sintomas incluem dificuldade de lidar com frustrações e acessos de raiva frequentes, mas em tom acima da birra infantil.

Michelle Regina da Costa e sua filha Alice - Bruno Santos/ Folhapress

Primeiro é preciso considerar que métodos para identificar distúrbios se sofisticaram e ganharam atenção nas décadas recentes. Então é claro que a frequência deles entre nós vai aumentar.

Resta ainda o desafio de entender se nossas crianças estão de fato com a cabeça cada vez mais em frangalhos ou se estamos diante de um boom de diagnósticos nem sempre precisos, que etiquetam desde cedo alguém como portador de uma condição complexa sem uma investigação mais minuciosa.

A resposta curta é: as duas alternativas estão corretas.

Uma reflexão mais profunda envolve discutir fatores culturais que perturbam a nova geração e o papel das redes sociais nisso tudo, para o bem ou para o mal.

Se por um lado as informações circulam ligeiras, deixando mais gente a par de transtornos antes reduzidos a frases como "criança é assim mesmo", por outro, perfis virtuais não raramente induzem a conclusões precipitadas.

A profissional de Recursos Humanos Michelle Regina da Costa, 33, desconfiava que havia algo de errado com sua caçula. Alice falava quase nada para seus quase 2 anos e andava na ponta dos pés, traços associados ao autismo.

A suspeita foi dissipada em três meses. Com auxílio da pediatra, antes de fechar um diagnóstico tão determinante, Michelle mudou a rotina em casa. Alice via mais de quatro horas de TV por dia. As sessões de "Mundo Bita" acabaram quase que por completo. Os pais, mergulhados em trabalho e afazeres domésticos, também se empenharam mais para interagir com a filha.

Michelle descartou de vez a hipótese autista quando foi pegar a filha na casa da mãe após o batente. "Ela correu para me abraçar, disse ‘a mamãe chegou!’." Nunca havia feito algo parecido. Hoje, Alice conversa, conta números, senta para brincar. Tudo inédito.

A popularização de diagnósticos "excessivamente generosos ao rotular uma criança [com uma desordem]" piorou uma situação que já era grave, segundo o pediatra Daniel Becker, ele próprio um fenômeno digital, com 840 mil seguidores no Instagram. "Você cria histeria. A criança atrasa um mês para falar uma palavrinha, e o pessoal tá gritando ‘autismo’ nas redes. Um pânico que leva a buscar recursos inadequados que o mercado acaba oferecendo. Claro que quem adora isso é a indústria farmacêutica."

Camila Mafra e David Henrique de Oliveira com os filhos gêmeos Theo e Noah - Arquivo pessoal

Há muita subjetividade em jogo —diferente, digamos, de uma pneumonia, que basta um raio-x para cravar que está lá. Nesses casos, a bola é dividida entre neurologia e psiquiatria, e a fronteira entre distúrbios crônicos e episódios circunstanciais é porosa.

Becker propõe um teste: coloque "será que eu tenho TDAH?" em inglês no Google. Os primeiros links são um questionário com perguntas simples, como "você consegue finalizar um projeto?". Coisas que acontecem com todo mundo. Aí o sujeito se convence que tem o transtorno, vai no especialista e é medicado.

O dano é exponencial nos mais novos. O cérebro deles é como massinha de modelar, mais moldável a fatores externos que vão da alimentação a remédios que, vale lembrar, podem vir com efeitos colaterais perigosos.

Diagnósticos equivocados também carregam sequelas sociais ao contribuir para a estigmatização de quem é tabelado com algum distúrbio, além de sobrecarregar o sistema de saúde com um problema superdimensionado.

Um estudo publicado em 2022 por psiquiatras canadenses investigou o uso do TikTok para espalhar conteúdo sobre saúde mental. A análise dos cem vídeos mais populares sobre TDAH na rede social revelou que 52% propagavam desinformação sobre o tópico, como dizer que ser competitivo é um sintoma, e 89% foram produzidos por pessoas sem qualquer formação na área de saúde.

Dos vídeos considerados enganosos, 71% tomavam quadros comuns, de ansiedade a oscilações no humor, como exclusivos do TDAH. Nenhum deles orientou seus espectadores a procurar um especialista para confirmar o diagnóstico.

Não seria o caso, contudo, de escantear a internet como ferramenta para esclarecer melhor a população sobre transtornos mentais, diz Luis Augusto Rohde, presidente da IACAPAP (Associação Mundial de Psiquiatria da Infância e Adolescência e Profissões Afins). "O compartilhamento de experiências pessoais por influencers pode ser útil para gerar conscientização e procura de profissionais. Temos que trabalhar junto [a esse grupo] para que a qualidade da informação dada seja baseada em evidência científica."

É um outro lado importante da moeda: detectar o quanto antes um transtorno é fundamental para que a pessoa tenha mais chance de ser tratada adequadamente. E ter contas populares falando sobre o tema pode fazer muita gente acordar para um problema antes ignorado.

"Há, claro, uma parcela que, presa a um diagnóstico incorreto, evoluirá de forma a piorar seu quadro clínico", afirma a pediatra Lilian Nakachima Yamada, que pesquisa a incidência de autismo nos bebês prematuros em seu doutorado na USP (Universidade de São Paulo). "Mas uma parcela razoável de suspeitas se confirma após avaliações específicas entre esse público que faz autoavaliações."

Foi o caso da influenciadora Camila Mafra, 32. Quando seus gêmeos Noah e Theo tinham 1 ano e 3 meses, ela decidiu investigar por que eles não atingiram marcos esperados para a idade deles. "A gente chamava, e não atendiam. Não davam tchau. A seletividade alimentar era terrível, comiam sopa batida e só."

Um dia, no Instagram, curtiu uma publicação de outra mãe de gêmeos. "Ela anunciou que os meninos eram autistas e informou quais as características. Li pensando: ‘Gente, ela tá falando sobre os meus filhos’."

Camila conta que peregrinou por médicos e ouviu muita coisa na linha "isso é normal, cada criança tem seu tempo" ou "sai do mundinho da internet". Demorou sete meses para chegar ao diagnóstico de TEA. Com terapia intensiva, o progresso veio rápido. Até a praia, onde Noah e Theo não iam descalços por causa da hipersensibilidade à textura da areia, deixou de ser problema.

Antes ser "uma mãe preocupada que acha que tudo é autismo do que a criança que nitidamente sofre com alguma coisa, e a família fala que o médico 'x' disse que não tem nada", diz. "Prefiro pecar pelo excesso."

A pediatra Yamada aconselha ponderação. "Ouço muito que ‘todas as crianças hoje têm algum transtorno’, o que claramente não é verdade. As redes espalham muita informação, e o leigo pinça parte delas e ‘lauda’ filhos, alunos e pacientes. O diagnóstico correto deve passar por avaliações interdisciplinares e reavaliações regulares, até que se tenha argumentos suficientes tanto para finalizar quanto para excluir uma hipótese."

Seu colega Becker ressalta a importância de reconhecer a crise de saúde mental nessa fase inicial da vida, agravada pela pandemia de Covid-19. Nossos filhos estão mais deprimidos, hiperativos e comendo muita porcaria ultraprocessada. Têm telas demais à disposição e convívio de menos com os pais, sobrecarregados de trabalho.

"Eles reagem a um sistema que está esmagando a infância deles. Se falarmos ‘ah, o problema é que estão com transtorno, então vamos tratar com remedinho’, o que estamos fazendo? Jogando pra debaixo do tapete toda a responsabilidade da sociedade na gênese dessa crise."

Ele sugere procurar sempre ajuda especializada, como neuropediatras e psiquiatras infantis, e uma segunda opinião se a primeira for medicalizante. "Se não houver na consulta uma boa conversa [sobre o dia a dia do menor de idade], já começou muito mal."

Rohde, da IACAPAP, não vê diagnósticos errados como um mal generalizado e alerta para os riscos de se basear "num punhado restrito de casos" em consultórios privados frequentados pela classe alta. "O perverso de apresentar o dado distorcido é que ele penaliza mais uma vez crianças e adolescentes de classes socioeconômicas desassistidas. [Isso] alimenta medidas governamentais que querem restringir o gasto com saúde mental no país."

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