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A ideia de nunca desistir é fascista, diz psicanalista

Adam Phillips, editor da obra de Freud na Penguin, questiona a valorização da persistência em novo livro, 'On Giving Up'

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São Paulo

É raro que alguém ganhe tapinhas nas costas por desistir. A desistência costuma vir acompanhada de justificativas e uma forte pecha de fracasso. A eterna persistência, por outro lado, costuma ser a norma, seja na forma de heróis da literatura, como os de Shakespeare ou Kafka, ou em slogans do tipo "o brasileiro não desiste nunca".

O apego à persistência, porém, pode causar mais mal do que bem, segundo o psicanalista inglês Adam Phillips, editor das traduções inglesas da obra de Sigmund Freud da Penguin Books, ex-diretor de psicoterapia infantil do Wolwerton Gardens Child e do Family Consultation Centre, em Londres.

O psicanalista britânico Adam Phillips - Colin McPherson/Divulgação

"Tendemos a pensar em desistir, na forma mais simples, como falta de coragem, como uma orientação vergonhosa ou imprópria em direção ao que é assustador e desonroso. Isso significa dizer que tendemos a valorizar e até idealizar a ideia de terminar coisas em vez de abandoná-las", escreve o psicanalista.

O trecho é parte do livro "On Giving Up" ("Sobre desistir", em tradução livre), lançado neste janeiro no hemisfério norte e que deve chegar ao Brasil em julho, pela editora Ubu. A obra é um conjunto de sete ensaios sobre temas como não querer, exclusão, descrença, censura e perda, além da desistência.

A abrangência de temas não é novidade para Phillips, que é autor de mais de 20 livros que vão de beijo e flerte até a história da psicanálise, quatro deles traduzidos para o português, "Monogamia", "O Flerte", "X" e "Winnicott" . O pediatra —famoso pela teoria dos pais "bons o bastante", que ensinam a desilusão a seus filhos na medida certa— é um dos objetos de estudo de Phillips, que se dedicou à clínica de psicanálise infantil por boa parte da carreira.

No novo livro, porém, ele se afasta dos afagos e brinquedos e debate os estigmas da desistência e suas implicações psicológicas. Ele prega que, ao abraçar a descontinuidade com menos peso, podemos ser mais felizes e quer que a desistência seja "uma pista para nossa complexidade moral e não apenas um de nossos infortúnios favoritos".

Muito trabalho cultural entra na valorização da persistência, nessa ideia de não desistir. As pessoas que não desistem são vistas como o melhor tipo de gente

Adam Phillips

psicanalista

"Muito trabalho cultural entra na valorização da persistência, nessa ideia de não desistir. As pessoas que não desistem são vistas como o melhor tipo de gente", diz o psicanalista. "É claro que é uma boa ideia persistir na cura para o câncer, ou na luta contra o bullying. Mas nunca desistir pode significar se torturar. Adictos nunca desistem. É algo que depende muito do contexto."

Na tentativa de renovar a aparência da desistência, o autor separa a atenção em dois tipos: foco estreito, que seleciona o que serve aos interesses imediatos e ignora o resto, e foco amplo, quando não existe um alvo imediato e é possível mirar o todo. A separação dessas duas atenções, segundo Phillips, visa a expandir o repertório em vez de forçar uma escolha, algo que, consequentemente, força também uma desistência.

Para Phillips, a literatura dos heróis mostra que a persistência pode levar à tragédia. "O herói trágico não desiste, ele não aprende a desistir, apesar dos males causados a ele e aos outros", diz, em entrevista à Folha. "A ideia de nunca desistir é fascista."

Mas desistir também pode desembocar em fascismo, segundo o psicanalista. É o que acontece quando minorias são excluídas da política.

O autor avalia que, embora a persistência possa levar a tragédias e a desistência seja, consequentemente, algo libertador e positivo, é uma ideia pouco apelativa —e associada à maior desistência de todas, o suicídio.

"[Vivemos em sociedades em que] temos que valorizar que a vida vale a pena ser vivida. Poucas pessoas querem se matar, mas para elas a vida é insuportável. Eles são vistos como delatores." A associação com o suicídio garantiu uma aura sombria à desistência, e toda descontinuidade parece um desafio ao imperativo de que a vida é sagrada.

Mas Phillips recusa essa pecha e afirma que a desistência pode ser a chave para sentir-se mais vivo. "Meu livro fala das coisas que precisamos abrir mão para ter a vida que queremos."

Ele escreve que precisamos questionar o suicídio como o paradigma da desistência e sugere que existem outras formas, mais suaves, de pensar esse processo. "Penso em dormir como uma forma de desistir, da consciência, da vigilância. Há formas de desistir que são saudáveis", diz Phillips. Ele quer que nos perguntemos como seria a desistência se a morte não fosse o único paradigma.

Apesar da reverência pela desistência, o autor não é um incentivador de toda e qualquer uma delas. O que ele quer é que seus leitores se indaguem sobre qual é o motivo de não desistirmos. "É difícil pensar em desistir. Somos empurrados a aguentar sofrimento, mas esse caminho e o da desistência precisam estar ambos na mesa", diz ele.

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