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Shakespeare criou mulheres mais interessantes do que homens, diz pesquisadora

Não é possível discutir feminismo ou machismo na obra do Bardo, na avaliação da autora do livro 'Shakesperianas'

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Reprodução do quadro 'Ofélia', de John Everett Millais

Reprodução do quadro 'Ofélia', de John Everett Millais Reprodução

São Paulo

"Venham para os meus seios de mulher e façam do meu leite fel, ministros do crime", diz Lady Macbeth antes de ser cúmplice de um dos assassinatos mais célebres da literatura.

Para cometer o ato, a mulher suplica para que os espíritos malignos lhe arranquem o sexo —"unsex-me", no original em inglês. Não pode sobrar nada do fraco gênero feminino para que ela se torne, enfim, dona de seu destino e agente da profecia que fará de seu marido o rei da Escócia.

Famosa como vilã fria e manipuladora, a dama é revista como uma pessoa complexa que recusa seu papel social de mulher no novo "Shakesperianas", livro de ensaios da escritora mineira Nara Vidal sobre as personagens femininas de William Shakespeare.

Nara Vidal, autora de 'Shakesperianas', que sai pela editora Relicário
Nara Vidal, autora de 'Shakesperianas', que sai pela editora Relicário - Divulgação

A obra discute brevemente 15 personagens entre as mais populares do autor —Julieta, Ofélia, Cleópatra, Desdêmona— e outras menos óbvias —caso das Bruxas macbethianas, Sycorax, as filhas do Rei Lear— além das protagonistas das comédias, como Portia, de "O Mercador de Veneza", Viola, de "Noite de Reis", e Catarina, de "A Megera Domada".

Vidal considera que seu trabalho, longe de ser acadêmico, é uma forma de aproximar os leitores do cânone, não um desejo de ajudar o debate feminista. "O cânone serve como referência para enriquecer a discussão feminista", diz. "Vejo pessoas defendendo que Shakespeare seja cancelado, que Dostoiévski seja cancelado."

O feminismo ou o machismo, porém, não servem para classificar Shakespeare —seria um anacronismo, segundo ela, já que o momento histórico do Bardo é anterior ao movimento político.

Mas a torcida pelas mulheres transparece quando a autora se pergunta por que existem poucos trabalhos sobre a presença delas nas peças do autor britânico —e para Vidal, elas são as pessoas mais complexas da obra.

Não que os shakespearianos sejam desinteressantes. Sobram análises sobre o ciúme cego de Otelo, sobre a loucura de Macbeth, sobre o existencialismo de Hamlet, mas, segundo a autora, as mulheres do Bardo têm em comum um arco psicológico que interage com a sociedade da época e que traduz bem a condição feminina do período.

"O que une as personagens é que, uma vez provocadas, elas respondem —cada uma à sua maneira— às estruturas sociais", afirma.

Julieta, para Vidal, parecia menos interessada no galante Romeu do que em um passaporte rápido para fora das obrigações familiares massacrantes dos Capuleto. A esperta Portia, ao vestir roupas masculinas, sabe que será mais respeitada.

Cleópatra, com seu dinheiro e poder, leva a vida quase como se fosse um homem. Lady Macbeth toma as rédeas do próprio destino e o concretiza sem esperar que o futuro aconteça sozinho. A gentil caçula Cordélia decepciona seu pai, o rei Lear, e não se engaja na competição pela herança com as irmãs mais velhas.

As personagens foram divididas, sem muito rigor por parte da autora, em quatro elementos: fogo, água, terra e ar. "O período elisabetano era uma época de interesse em astronomia", diz Vidal. Ela ressalta que Shakespeare faz diversas referências a elementos e aos astros nas peças. Julieta, por exemplo, é nascida no início de agosto, sob o signo astrológico de leão, ressalta a autora.

Por isso mesmo, o fogo comporta nomes como a rebelde Julieta, a livre Cleópatra e a astuta Catarina. A água traz a carga dramática com Desdêmona, Lavínia, Temora e Ofélia. A terra traz uma certa onipresença sobrenatural com as Bruxas de Macbeth, Sycorax e as três filhas do rei Lear. O ar, por fim, traz as cerebrais Lady Macbeth, Portia e Viola.

O que as une além da interação com o meio, diz Vidal, é o destino. Menos por ser feliz ou triste, mas por ser irremediavelmente alterado. "É chegada a hora de ter uma proposta de leitura que nos inclua", diz Vidal. Para ela, a prioridade deve ser ver as personagens como complexas e ricas —humanas, afinal.

"Lady Macbeth é um ótimo exemplo. Ela já era ambiciosa, o oráculo planta a vontade de mudança e ela concretiza o próprio futuro. Não só o regicídio, mas a própria jornada de deixar a passividade e se transformar para sempre." O que está feito não pode ser desfeito.

Shakesperianas

  • Preço 79, 90 (200 págs.)
  • Autoria Nara Vidal
  • Editora Relicário

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