Freud em bom português: nova edição explica o luto e a melancolia
Já faz alguns anos que os especialistas em Sigmund Freud (1856-1939) comemoram o surgimento de boas versões brasileiras de seus textos. Durante três décadas, a única tradução de que dispúnhamos da obra do fundador da psicanálise era tão ruim que chegava a impedir sua correta compreensão. Da leitura, sobrava uma advertência, velha conhecida dos estudantes de humanidades: "não leia Freud em português".
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Esse cenário começou a mudar em 2004, com a publicação das traduções de Luiz Alberto Hanns, pela Imago --a mesma editora que, em 1974, publicara a tão problemática versão standard brasileira. Cinco anos depois, Freud passou a falar o português claro de Paulo César de Souza (Companhia das Letras). Ambas as traduções são feitas diretamente do alemão e, polêmicas à parte, é certo que não têm os graves problemas da primeira versão, vertida da tradução inglesa de James Strachey.
Lançada nesta semana, a nova edição do texto "Luto e Melancolia" (Cosac Naify, 144 págs., R$ 39,90) nos faz lamentar ainda mais que tenhamos passado tanto tempo ouvindo Freud gaguejar um mau português. Ao aliar erudição literária e clareza discursiva, fluidez verbal e precisão conceitual, o texto da psicanalista Marilene Carone (1942-1987) deixa a certeza melancólica de que poderíamos estar em outro nível de apropriação do pensamento freudiano, não tivesse o trabalho da tradutora sido interrompido 25 anos atrás por sua morte prematura.
O psicanalista e professor da USP Christian Dunker lembra que as traduções de Carone já circulavam, disputadas, em círculos muito mais restritos. "Eram clássicos do submundo psicanalítico", conta. "Quando ela morreu, todos diziam: perdemos 20 anos."
ESPELHOS QUE SE DEFRONTAM
Qual a diferença entre um episódio normal de tristeza e um quadro patológico de depressão? Em "Luto e Melancolia", Freud descreve o processo normal do luto, pelo qual todos passamos quando perdemos algo ou alguém que nos é importante. Ao mesmo tempo, tenta entender o que ocorre de diferente com aquelas pessoas que, ao se defrontarem com tais situações, veem suas vidas estilhaçarem, como um cristal jogado ao chão.
Ocorre que, ao invés de se esforçar para criar separações ilusórias e problemáticas, Freud sempre insistiu em diluir as fronteiras que separam a normalidade da loucura. Em sua obra, os loucos nunca são tão irracionais e incompreensíveis quanto se pensa; e, ao mesmo tempo, ninguém parece ser lá muito normal. Na psicanálise, os cristais que não se estilhaçam também têm as suas rachaduras. Elas só estão menos visíveis.
"São as similaridades entre luto e melancolia que iluminam os dois fenômenos, como espelhos que se defrontam", resume o escritor e tradutor Modesto Carone, que foi casado com Marilene.
Arquivo Pessoal | ||
A psicanalista Marilene Carone (à esq.), que traduziu "Luto e Melancolia", com a filha Silvia e o marido, Modesto |
HERANÇA PÚBLICA
Marilene e Modesto tiveram dois filhos. André, professor de filosofia da psicanálise na Universidade Federal de São Paulo, dá continuidade ao trabalho de tradução de Freud, iniciado por sua mãe. Silvia, a primogênita, cursou Psicologia na PUC-SP e, agora, faz pós-graduação em saúde mental infantil na Tavistock Centre, em Londres.
"O universo da psicanálise sempre me despertou uma espécie de fascínio", conta Silvia, que, ainda criança, pedia à sua mãe para acompanhá-la nos seminários de psicanálise que Marilene frequentava em São Paulo. "Ela tinha consultório em casa. Aquele universo estava, até fisicamente, muito próximo de mim."
Silvia procura dissociar a inevitável influência da mãe de qualquer tentativa de filiação teórica. Até porque a psicanálise conhece bem histórias de filhos que tentaram arrogar para si a propriedade intelectual das obras de seus progenitores. Anna Freud (1895-1982), teórica de quilate nem um pouco desprezível, envolveu-se em célebre disputa com a psicanalista inglesa Melanie Klein (1882-1960) pelo legado de seu pai.
"A herança intelectual não tem herdeiros designados; é um bem público", resume Silvia. "O que minha mãe me deixou de fato foi uma enorme herança afetiva."
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Reprodução |
Capa de "Luto e Melancolia" |
LUTO E MELANCOLIA
Autor: Sigmund Freud
Editora: Cosac Naify
Número de páginas: 144
Preço: R$ 39,90
Livraria da Folha
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