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Daniel A. Dourado e Fernando Aith

Liberação da cloroquina para Covid-19 pelo Ministério da Saúde é arriscada e ilegal

O Estado deve atuar para garantir que os tratamentos para as doenças sejam seguros e eficazes, não apostar em achismos

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Em meio às medidas para o enfrentamento da pandemia de Covid-19, o Ministério da Saúde começou a distribuir aos estados mais de 3 milhões de unidades do medicamento cloroquina e definiu um protocolo para uso em pacientes com formas graves da doença. Além disso, assumiu a possibilidade de ampliar o uso para pacientes com sintomas leves.

Mas, como até o momento não há evidências científicas de que esse medicamento seja eficaz e seguro para tratamento da Covid-19, essas medidas podem colocar as pessoas em risco e são ilegais pela atual legislação sanitária brasileira.

A cloroquina e a hidroxicloroquina são drogas utilizadas há muitos anos para tratamento de malária e doenças reumáticas (como lúpus e artrite reumatoide). São medicamentos cuja segurança e eficácia está bem definida para essas indicações clínicas e que apresentam efeitos adversos também bastante conhecidos, alguns potencialmente graves, como arritmias cardíacas.

É comum que pesquisadores experimentem drogas já conhecidas para doenças novas quando existe alguma hipótese que relacione o mecanismo de ação da droga com aquilo que se sabe sobre a doença. Como estamos vivendo uma pandemia, cientistas do mundo todo têm se empenhado para encontrar algum tratamento para a Covid-19, inclusive testando muitos medicamentos —a cloroquina é apenas um deles. É importante dizer que, até a data de hoje, ainda não há evidências de que nenhuma droga seja segura e eficaz contra a Covid-19, como o próprio Ministério da Saúde reconhece.

Por razões políticas, a cloroquina e a hidroxicloroquina ganharam projeção e passaram a ser consideradas possíveis tratamentos mais promissores para combater o novo coronavírus, embora só houvesse estudos in vitro (em laboratório) e estudos preliminares com poucos pacientes. Nessa fase, contudo, nenhum resultado é considerado evidência científica, e indica somente que é possível começar ensaios clínicos com esses medicamentos. Resultados em testes pré-clínicos e em estudos preliminares não necessariamente predizem bons resultados clínicos.

Muitas vezes drogas que parecem promissoras em culturas de células ou quando testadas em poucas pessoas não se mostram eficazes quando começam a ser testadas para uso na população. Por ora, são necessários estudos clínicos de qualidade tanto com a cloroquina como com outros medicamentos.

Muitos já começaram a ser feitos, inclusive por pesquisadores brasileiros, embora os estudos iniciais com cloroquina não pareçam muito animadores.

Mesmo assim, o Ministério da Saúde cedeu às pressões e decidiu liberar o uso de cloroquina como se fosse um tratamento estabelecido para a Covid-19. Sem segurança e eficácia estabelecidas, o ministério emitiu uma nota técnica com um protocolo para uso em casos graves. Sem saber se o medicamento de fato auxilia no tratamento, pacientes começaram a ser submetidos ao risco de efeitos adversos, como o agora ex-ministro admitiu na ocasião.

A eventual autorização para pacientes com sintomas leves –cerca de 80% dos casos— pode trazer prejuízos ainda maiores, por exemplo precipitando uma arritmia cardíaca em alguém que não precisaria de remédio nenhum. O novo ministro reconheceu a ausência de comprovação científica, mas manteve o protocolo para uso de cloroquina em pacientes graves.

Além de imprudente, essa liberação feita pelas autoridades sanitárias para uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 é ilegal.

O registro de medicamentos é obrigatório no Brasil e tem como requisito que o produto, através de comprovação científica e de análise, seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe (Lei 6.360/1976, art. 16, II). A verificação dessa conformidade é competência da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que inicialmente se pronunciou contra a liberação, mas mudou de posição poucos dias depois, mesmo sem terem surgido evidências científicas.

A alegação de que o Ministério da Saúde autorizou a cloroquina pelo chamado uso compassivo (por compaixão) contraria norma da própria Anvisa, que define que essa modalidade exige anuência da agência para cada paciente, pessoal e intransferível, não admitindo liberação generalizada para grupos de pessoas (RDC Anvisa 38/2013, art. 13).

Não bastasse isso, a mencionada nota técnica distribuída pelo Ministério da Saúde contraria a Lei Orgânica da Saúde. Ao definir recomendação de uso e posologia de cloroquina e hidroxicloroquina –sem base científica, porque não existe dose estabelecida desses medicamentos para tratamento de Covid-19–, o ministério criou protocolo clínico e diretriz terapêutica sem observar o procedimento previsto em lei, que exige o assessoramento da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), considerando as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento (Lei 8.080/1990, art. 19-Q).

A lei recentemente aprovada pelo Congresso para o enfrentamento da pandemia de Covid-19 também estabelece que quaisquer as medidas que sejam adotadas, como a definição de tratamentos específicos, somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas (Lei 13.979/2020, art. 3º, § 1º).

Vale ressaltar que o chamado uso off label de medicamento sempre existiu. Trata-se da prescrição de tratamento medicamentoso com finalidade além da indicada na bula, portanto diferente do uso registrado no órgão regulatório de vigilância sanitária (que, no Brasil, é a Anvisa).

Isso é essencialmente o que Conselho Federal de Medicina (CFM) reafirma no parecer sobre o uso de cloroquina e hidroxicloroquina na Covid-19: não agem ilegalmente os médicos que prescrevem esses medicamentos para pacientes diagnosticados com Covid-19, desde que assumam a responsabilidade e tenham consentimento livre e esclarecido desses pacientes.

Mas o Ministério da Saúde não pode definir protocolo clínico e distribuir medicamento nessa situação, porque a lei exige comprovação científica. É obrigação legal das autoridades sanitárias zelar pela segurança e eficácia dos medicamentos disponibilizados à população. O uso off label, ou seja, fora da bula, é situação excepcional e não deve integrar protocolos e diretrizes terapêuticas oficiais.

O mundo todo está à espera da descoberta de um tratamento para os casos graves de Covid-19 ou, tanto melhor, do desenvolvimento da sua vacina. Aguardamos todos que a ciência nos traga a resposta para essa que já é a mais grave pandemia do século 21. É justamente por isso que não devemos descuidar das evidências científicas como fundamento para as decisões a serem tomadas pelas autoridades sanitárias, conforme prevê a legislação brasileira.

O direito à saúde assegurado pela Constituição atribui ao Estado o dever de atuar para promoção, proteção e recuperação da nossa saúde, o que inclui garantir que os tratamentos para as doenças sejam seguros e eficazes. Apostar em achismos e promessas de ocasião não é o caminho para isso. O momento pede cautela e confiança na ciência.

Daniel A. Dourado

Médico, advogado, professor universitário e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa/USP)

Fernando Aith

Advogado, professor titular da Faculdade de Saúde Pública da USP e diretor do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa/USP)

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