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Coronavírus

Pandemia exige critérios claros para salvar o maior número possível de vidas

É tarefa de sociedades científicas orientar médicos na traumática triagem de pacientes para UTI e, das autoridades, agir para evitar chegar a esse ponto

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Suzana Margareth Lobo Lara Kretzer

A crise imposta pela Covid-19 expõe os serviços de saúde ao risco de colapso. É responsabilidade das autoridades, gestores e profissionais da saúde a introdução de medidas de redução do contágio e de aumento da capacidade de atendimento à população.

Mas uma pandemia pode trazer o inimaginável, e o número de pessoas que precisam de cuidados emergenciais e de UTI ser muito maior do que o sistema de saúde consegue acomodar.

Cabe aos profissionais da saúde estarem preparados para lidar com situações de colapso do sistema de saúde, e às sociedades científicas, norteá-los com recomendações que sejam claras, transparentes e devidamente explanadas à sociedade.

Em uma força-tarefa da Associação Brasileira de Medicina Intensiva (Amib) com a Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede), Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), elaboramos recomendações sobre a alocação de recursos em esgotamento diante da pandemia de Covid-19.

Inicialmente adotamos o princípio que guia protocolos de triagem em situações de grandes catástrofes e pandemias, o de salvar o maior número possível de vidas. Isso só é possível se pudermos identificar os pacientes que têm mais chances de sobreviver.

O passo seguinte foi o de pesquisar modelos de triagem que respeitavam esse princípio e que já tivessem passado pelo escrutínio de especialistas.

Optamos por utilizar, como ponto de partida, um modelo americano desenvolvido a partir de um processo de consulta à população e a especialistas de medicina, bioética e direito, o qual vinha sendo aprimorado ao longo dos anos.

Em 25 de abril de 2020, publicamos a primeira versão do modelo de triagem, expondo-a à opinião pública. Convidamos profissionais do direito e da área da saúde a oferecer suas opiniões para que o resultado refletisse melhor as particularidades e valores brasileiros.

A partir das valiosas contribuições, a segunda versão foi revisada e publicada. Nela, propomos três critérios principais, que refletem a análise de aspectos clínicos que sabemos contribuírem para uma maior chance de um paciente sobreviver à forma grave de uma doença aguda.

O primeiro critério utiliza uma escala, já conhecida por emergencistas e intensivistas, que mede quão afetados estão os diversos órgãos do paciente. Um paciente com menos comprometimento é priorizado sobre outros cujos órgãos já estão doentes demais.

O segundo critério é baseado na identificação de doenças crônicas em estágio muito avançado, que diminuem a chance de sobreviver, mesmo em UTI.

O terceiro critério busca medir as chances de sobrevivência de um paciente com base em seu estado físico, o que é mensurado por meio de uma escala também conhecida no meio médico. Quanto menor a capacidade física de um organismo, menor a capacidade de combater uma doença ou de tolerar bem tratamentos agressivos oferecidos na UTI.

Pontuações são alocadas em cada um dos três critérios. Quanto menor a pontuação total, maiores as chances de um paciente sobreviver --e maior sua prioridade para receber recursos escassos como ventiladores e leitos de UTI.

Em caso de empate, prioriza-se a menor pontuação no primeiro; se o empate persistir, uma equipe de profissionais experientes deve ser acionada para tomar a melhor decisão.

Durante a vigência do protocolo de triagem, é fundamental que o paciente que não foi selecionado para UTI ou para receber ajuda de um respirador acesse todos os outros tratamentos que a equipe médica julgar adequados, como oxigênio, remédios para alívio de sintomas e outras medicações.

Alguns desses pacientes infelizmente não vão sobreviver. Eles devem receber todos os cuidados de prevenção e alívio dos sofrimentos que podem acompanhar a morte. A ajuda de profissionais com experiência em cuidados paliativos é recomendada.

Algumas condições são absolutamente essenciais para a adoção dessas recomendações: declaração de estado de emergência em saúde pública; compatibilidade das recomendações ao ordenamento jurídico brasileiro; reconhecimento de que tenha havido esforços razoáveis para aumentar a oferta dos recursos; envolvimento da direção técnica de cada hospital, a fim de nomear comissões de triagem e garantir alinhamento com o sistema de regulação de leitos local/regional que permita encaminhar pacientes para outras unidades hospitalares com disponibilidade de leitos, incluindo a possibilidade de intercâmbio entre leitos públicos e privados; e monitoração contínua das condições dos recursos, que permitam identificar a necessidade de iniciar e a possibilidade de encerrar a triagem.

Por fim, nosso desejo é que o uso desse protocolo não seja necessário e que todos os esforços individuais e coletivos —e, em especial, os esforços das autoridades responsáveis— sejam suficientes para afastar essa possibilidade.

Sabemos quão dura e moralmente desgastante é uma medida como essa, mesmo que seja necessária para salvar o maior número possível de vidas. Os profissionais da saúde não desejam carregar o peso dessas decisões, e a população não deseja passar por esse trauma. Evitar esse cenário deveria ser, portanto, a prioridade de todos.


Suzana Margareth Lobo

Professora livre-docente da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, é presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira

Lara Kretzer

Doutora em direito pela Universidade de Londres, é médica intensivista em Florianópolis e coordenadora da residência em medicina paliativa do Hospital Universitário de Sergipe (HU/Ebserh - UFS)

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