Descrição de chapéu Coronavírus

'Insiders' ganham US$ 1 bilhão na corrida pela vacina do coronavírus

Apostas bem cronometradas em ações geraram grandes lucros para altos executivos e diretores

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David Gelles Jesse Drucker
The New York Times

Em 26 de junho passado, uma pequena empresa de San Francisco chamada Vaxart fez um anúncio de surpresa: uma vacina para o coronavírus na qual estava trabalhando foi escolhida pelo governo dos Estados Unidos para fazer parte da Operação Warp Speed, a principal iniciativa federal para desenvolver rapidamente drogas de combate à Covid-19.As ações da Vaxart dispararam.

Diretores e acionistas da companhia, que semanas antes haviam recebido opções de ações no valor de alguns milhões de dólares, viram o valor desses prêmios aumentar seis vezes. E um fundo hedge que controlava parcialmente a companhia saiu com mais de US$ 200 milhões em lucros instantâneos.

Há uma forte corrida para desenvolver uma vacina para o coronavírus, e algumas empresas e investidores estão apostando que os vencedores terão enormes lucros ao vender centenas de milhões —ou mesmo bilhões— de doses para um público desesperado.

Em toda a indústria farmacêutica e médica, executivos graduados e membros de diretorias estão capitalizando com essa dinâmica.

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As vacinas em teste contra a Covid-19
As vacinas em teste contra a Covid-19
Ainda não há nenhuma vacina autorizada para uso amplo na população

Estão ganhando milhões de dólares depois de anunciar avanços positivos, que incluem o apoio do governo, em seus esforços para combater a Covid-19. Depois desses anúncios, membros graduados de pelo menos 11 empresas —a maioria delas firmas menores cujas fortunas muitas vezes dependem do sucesso ou fracasso de uma única droga— venderam ações em valor bem superior a US$ 1 bilhão desde março, segundo números compilados para The New York Times pela Equilar, firma que fornece dados.

Em alguns casos, "insiders" dessas companhias estão lucrando com compensação agendada regularmente ou negociações automáticas de ações. Mas em outras situações esses membros graduados parecem estar aproveitando as oportunidades de vender enquanto o preço das ações está bem alto. E algumas companhias deram opções de ações a executivos pouco antes de anúncios que agitaram o mercado sobre seu progresso nas vacinas.

As receitas repentinas salientam os poderosos incentivos financeiros para diretores da companhia gerarem notícias positivas na corrida por vacinas e tratamentos para o coronavírus, mesmo que as drogas não sejam produzidas.

Algumas empresas estão atraindo a atenção do governo por possivelmente usar suas associações com a Operação Warp Speed como esquemas de marketing.

Por exemplo, o título na notícia sobre a Vaxart declarava: "Vacina para Covid-19 da Vaxart é escolhida pela Operação Warp Speed do governo americano". Mas a realidade é mais complexa.

A candidata a vacina da Vaxart foi incluída em um teste com primatas que uma agência federal organizou em conjunto com a Operação Warp Speed. Mas a Vaxart não está entre as companhias escolhidas para receber apoio financeiro significativo da operação para produzir centenas de milhões de doses de vacinas.

"O Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA entrou em acordos de financiamento com certos fabricantes de vacinas, e estamos negociando com outros. Nenhum deles envolve a Vaxart", disse Michael Caputo, secretário-assistente para assuntos públicos do departamento.

"A candidata a vacina da Vaxart foi escolhida para participar de estudos preliminares do governo dos EUA para determinar áreas potenciais para possível parceria e apoio da Operação Warp Speed. Neste momento esses estudos estão em andamento e não foram feitas determinações."

Algumas autoridades do Departamento de Saúde e Serviços Humanos [HHS] ficaram mais preocupadas sobre se empresas, incluindo a Vaxart, estão tentando inflar o preço de suas ações exagerando sua atuação na Warp Speed, segundo uma autoridade do governo Trump. O departamento transmitiu essas preocupações à Comissão de Valores Mobiliários (SEC na sigla em inglês), segundo a autoridade, que falou sob a condição de anonimato.

Não está claro se a comissão está examinando a questão. Uma porta-voz da SEC não quis comentar.

"A Vaxart adota boas diretrizes e políticas de governança corporativa e toma decisões de acordo com os melhores interesses da companhia e seus acionistas", disse o executivo-chefe da Vaxart, Andrei Floroiu, em um comunicado na sexta-feira (24). Referindo-se à Operação Warp Speed, ele acrescentou: "Acreditamos que a vacina para covid-19 da Vaxart é a mais animadora na OWS porque é a única vacina oral (uma pílula) na OWS".

As transações de ações em momentos ideais geralmente são legais. Mas investidores e especialistas em governança corporativa dizem que podem dar a aparência de que executivos estão lucrando com informação privilegiada, e podem desgastar a confiança do público na indústria farmacêutica quando o mundo espera que essas companhias curem a Covid-19.

"É inadequado executivos de uma companhia farmacêutica lucrarem com uma crise", disse Ben Wakana, diretor-executivo da Pacientes por Drogas Acessíveis, grupo de defensoria sem fins lucrativos. "Todos os dias os americanos acordam e fazem sacrifícios durante esta pandemia. As companhias farmacêuticas veem isso como um dia do pagamento."

Executivos de uma longa lista de empresas colheram lucros de sete ou oito dígitos graças a seu trabalho em vacinas e tratamentos para o coronavírus.

As ações de Regeneron, empresa de biotecnologia em Tarrytown, Nova York, subiram quase 80% desde o início de fevereiro, quando ela anunciou uma colaboração com o HHS para desenvolver um tratamento para Covid-19. Desde então, os principais executivos da empresa e membros do conselho venderam quase US$ 700 milhões em ações. O executivo-chefe, Leonard Schleifer, vendeu US$ 178 milhões de ações em um só dia em maio.

Alexandra Bowie, porta-voz da Regeneron, disse que a maior parte das vendas havia sido marcada com antecedência por meio de programas que vendem automaticamente as ações de executivos quando as ações atingem determinado valor.

A Moderna, desenvolvedora de vacinas fundada há dez anos em Cambridge, Massachusetts, que nunca colocou um produto no mercado, anunciou no final de janeiro que estava trabalhando numa vacina para o coronavírus. Ela emitiu uma série de comunicados à imprensa exaltando seu progresso na vacina, e suas ações mais que triplicaram, dando à companhia um valor de mercado de quase US$ 30 bilhões.

Pessoas com acesso privilegiado à Moderna venderam cerca de US$ 248 milhões em ações desde esse anúncio em janeiro, a maior parte depois que a empresa foi selecionada em abril para receber verbas federais para seus esforços em busca da vacina.

Enquanto algumas dessas vendas tinham sido agendadas com antecedência, outras foram mais estimuladas pelo momento. A Flagship Ventures, fundo de investimentos dirigido pelo fundador e presidente da companhia, Noubar Afeyan, vendeu mais de US$ 68 milhões em ações da Moderna em 21 de maio. Essas transações não foram agendadas, segundo documentos da SEC.

Executivos e membros da diretoria da Luminex, Quidel e Emergent BioSolutions venderam ações no valor combinado de US$ 85 milhões depois de anunciar que estavam trabalhando em vacinas, tratamentos ou soluções para testes.

Em outras empresas, executivos e diretores receberam grandes concessões de opções de ações pouco antes de as companhias anunciarem boas notícias que levantaram o valor dessas opções.

A Novavax, farmacêutica de Gaithersburg, em Maryland, começou a trabalhar em uma vacina no início deste ano. Nesta primavera, a companhia relatou resultados preliminares promissores de testes e um acordo de US$ 1,6 bilhão com o governo Trump.

Em abril, com suas ações abaixo de US$ 24, a Novavax emitiu um lote de novos prêmios de ações para todos os seus funcionários, "em reconhecimento pelo trabalho extraordinário de nossos empregados para implementar um novo programa de vacina". Quatro executivos seniores, incluindo o executivo-chefe, Stanley Erck, receberam opções de ações que valiam menos de US$ 20 milhões na época.

Desde então, a ação da Novavax disparou para mais de US$ 130 cada uma. Pelo menos no papel, as opções de ações dos quatro executivos valem mais de US$ 100 milhões.

Desde que a companhia atinja um marco com seus testes de vacina, o que se espera que realize em breve, os executivos poderão usar as opções para comprar ações da Novavax com desconto no início do próximo ano, independentemente de a companhia desenvolver com êxito uma vacina.

Silvia Taylor, porta-voz da Novavax, disse que os prêmios de ações se destinam a "incentivar e manter nossos empregados durante este momento crítico". Ela acrescentou que "não há garantia de que elas manterão seu valor".

Dois outros laboratórios farmacêuticos, Translate Bio e Inovio, ofereceram grandes lotes de opções de ações a executivos e diretores pouco antes de anunciarem seu progresso em vacinas para o coronavírus, fazendo as ações subirem ainda mais. Representantes das companhias disseram que as opções foram prêmios anuais agendados regularmente.

A Vaxart, porém, é onde se ganhou mais dinheiro mais rapidamente.

No início do ano, suas ações valiam cerca de US$ 0,35. No final de janeiro, a Vaxart começou a trabalhar em uma vacina via oral para o coronavírus, e suas ações começaram a subir.

O maior acionista da Vaxart era um fundo hedge de Nova York, o Armistice Capital, que no ano passado adquiriu quase dois terços das ações da companhia. Dois executivos da Armistice, incluindo o fundador,

Steven Boyd, entraram para o conselho de diretores da Vaxart. O fundo hedge também adquiriu direitos, conhecidos como 'garantias', para comprar mais 21 milhões de ações da Vaxart em algum momento futuro por apenas US$ 0,30 cada uma.

A Vaxart nunca colocou uma vacina no mercado. Ela tem apenas 15 empregados. Mas durante a primavera a Vaxart anunciou dados preliminares positivos para sua vacina, juntamente com a associação a uma empresa que poderá fabricá-la. No final de abril, seus investidores sentiram o potencial de grandes lucros e as ações da companhia tinham chegado a US$ 3,66 —um aumento de dez vezes em relação a janeiro.

Em 8 de junho, a Vaxart mudou os termos de seu acordo de garantias com a Armistice, facilitando para o fundo adquirir rapidamente as 21 milhões de ações, em vez de ter de comprar e vender em pequenos lotes.

Uma semana depois, a Vaxart anunciou que seu executivo-chefe estava deixando o cargo, mas continuaria como presidente. O novo CEO, Floroiu, tinha trabalhado antes com Boyd, o fundador da Armistice, no fundo hedge e na consultoria McKinsey.

Em 25 de junho a Vaxart anunciou que havia assinado uma carta de intenções com outra companhia que poderia ajudá-la a produzir em massa uma vacina para o coronavírus. As ações da Vaxart quase duplicaram naquele dia.

No dia seguinte, a Vaxart emitiu seu comunicado de imprensa dizendo que foi selecionada pela Operação Warp Speed. Suas ações duplicaram de valor instantaneamente mais uma vez, a certo ponto chegando a US$ 14, seu nível mais alto em anos.

"Estamos muito satisfeitos por sermos uma das poucas companhias escolhidas pela Operação Warp Speed, e que nossa vacina oral esteja sendo avaliada", disse Floroiu.

A Armistice aproveitou o aumento exponencial da ação —naquela altura, mais de 3.600% desde janeiro. Em 26 de junho, uma sexta-feira, e na segunda seguinte, o fundo exerceu suas garantias para comprar quase 21 milhões de ações da Vaxart, por US$ 0,30 ou US$ 1,10 cada uma —compras que não poderia ter feito tão rapidamente se seu acordo com a Vaxart não tivesse sido modificado semanas antes.

A Armistice então vendeu imediatamente as ações a preços entre US$ 6,58 e US$ 12,89 cada uma, segundo documentos da SEC. Os lucros do fundo foram enormes: mais de US$ 197 milhões.

"Parece que as garantias podem ter sido reconfiguradas num momento em que eles sabiam que haveria boas notícias", disse Robert Daines, professor da escola de direito de Stanford especializado em governança corporativa. "É uma mudança valiosa, feita exatamente quando o preço da ação da companhia estava prestes a subir."

Ao mesmo tempo, o fundo hedge descarregou parte das ações da Vaxart que havia comprado, ganhando dezenas de milhões de dólares em lucros adicionais.

No final daquela segunda-feira, 29 de junho, a Armistice tinha vendido quase todas as suas ações da Vaxart.

Boyd e a Armistice não quiseram comentar.

Floroiu disse que a mudança no acordo da Armistice "foi no melhor interesse da Vaxart e seus acionistas", e ajudou-a a levantar dinheiro para trabalhar na vacina contra a Covid.

Ele e outros diretores da Vaxart também estavam posicionados para ter grandes lucros pessoais. Quando se tornou executivo-chefe em meados de junho, Floroiu recebeu opções de ações no valor de aproximadamente US$ 4,3 milhões. Um mês depois, essas opções valiam mais de US$ 28 milhões.

Normalmente, quando as empresas emitem opções de ações a executivos, as opções não podem ser exercidas durante meses ou anos. Devido aos termos incomuns e ao aumento do preço da ação da Vaxart, a maior parte das de Floroiu podem ser vendidas agora.

Os diretores da Vaxart também receberam grandes opções de ações, dando-lhes o direito de comprar ações da companhia por preços muito abaixo dos atualmente negociados. Quanto mais as ações subirem, maiores os lucros.

"A Vaxart está perturbando o mundo das vacinas", gabou-se Floroiu durante uma conferência virtual para investidores na quinta-feira (23). Ele acrescentou que sua impressão era de que "tudo bem lucrar com vacinas para a Covid-19, desde que você não esteja explorando a procura".

*Colaborou Noah Weiland.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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