A disputa política em torno do novo coronavírus migrou do campo do manejo da pandemia para o da tentativa de imunização da população.
Se o presidente Jair Bolsonaro conseguiu escapar relativamente ileso, do ponto de vista de popularidade, da primeira batalha dessa guerra, seu rival João Doria surge como mais bem posicionado para o próximo embate. No horizonte, a disputa pelo Planalto em 2022.
O avanço da vacina chinesa Coronavac rumo ao posto de primeiro imunizante a ser distribuído no país dá ao governador tucano de São Paulo um trunfo político inestimável. Ela será produzida em conjunto com o Instituto Butantan.
O tom adotado por Doria em sua entrevista para anunciar o estudo que aponta a segurança do composto chinês foi claro. Enquanto Bolsonaro já questionou a vacina que "um governador resolveu acertar com outro país", em relação à China, o tucano disse: "Aqui não discutimos a origem".
Ainda assim, o tucano busca moderação ao repetir o discurso de que torce pelo máximo de imunizantes disponíveis, e orientou toda sua equipe a evitar falas que politizem a questão.
O motivo é óbvio, além de sensatez: Doria não quer ser visto como um Bolsonaro de sinal trocado, fazendo proselitismo em favor do combate à pandemia enquanto o presidente se aferrou ao discurso de minimizá-la.
Desde o começo da pandemia, o tucano se colocou como principal antagonista do presidente na crise. Inicialmente, deu certo: ele e outros governadores viram suas políticas mais bem avaliadas do que a confusão da fase "gripezinha" de Bolsonaro.
O comportamento do mandatário máximo não melhorou, mas sua insistência em que governadores e prefeitos eram responsáveis pelas mortes devido à autorização de manejo que ganharam do Supremo colou.
Houve uma fase de protestos de rua estimulados por Bolsonaro contra Doria e outros governadores, acusados de prejudicar a economia com políticas de distanciamento social, um tema com grande apelo especialmente entre os mais pobres.
Progressivamente, a popularidade presidencial melhorou devido entre outras coisas ao auxílio emergencial da crise, mas o principal foi o descolamento de atribuições. A população não colocou na conta de Bolsonaro os caixões da Covid-19.
Mas isso é uma fotografia passada. A partir de janeiro, não deverá mais haver auxílio emergencial. E a pauta principal será sobre a vacinação, perigosamente vendida como a solução mágica da pandemia, uma ilusão para a qual vários infectologistas alertam.
E aí Doria está em vantagem. Primeiro, porque Bolsonaro já adotou um discurso de menosprezo à eficácia da vacinação, uma sequência lógica de seu negacionismo mais amplo.
Segundo, porque o imunizante que o governo federal adotou para chamar de seu, o inglês da AstraZeneca/Universiade de Oxford, está tendo um desenvolvimento mais problemático do que o da Sinovac/Butantan, provavelmente por usar uma tecnologia conhecida de estímulo imunológico.
No governo paulista, a expectativa é de quem ambos funcionem, mas que o chinês esteja à disposição e em grande volume mais rapidamente. Por isso a ideia de ampla vacinação em São Paulo seguida de oferta para o resto do país.
A imagem de um provedor da vacina que fez o mundo perder 2020 é vista, entre aliados e críticos do tucano, como um ativo que pode mudar seu patamar de visibilidade nacional.
Pesquisas internas do governo já mostram que o governo paulista é majoritariamente associado à vacina pela população, que em boa parte reconhece o rosto de Doria na Coronavac.
Bolsonaro ficará numa sinuca se trabalhar contra isso, sendo acusado de não querer o fim da crise. Se não atrapalhar, e chama a atenção a liberação de recursos de Eduardo Pazuello (Saúde) para São Paulo, verá o rival fortalecido em termos de imagem.
Não é casual, portanto, a insistência do tucano em falar na imunização não só dos "brasileiros de São Paulo", termo que sempre usou para nacionalizar seu governo, mas também dos "brasileiros de todo o país".
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