Descrição de chapéu Folha por Folha Coronavírus

Morte de paciente de Covid do meu lado foi como filme de guerra, sem as bombas

Repórter relata visita a hospital de campanha na Grande SP no pico da pandemia

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São Paulo

Na primeira vez que entrei em um hospital para pessoas com coronavírus, fiquei com medo de encostar nas paredes. Ao sair, cheguei a passar álcool em um bloco com as minhas anotações e até borrei parte delas.

Quase um ano e algumas visitas a locais parecidos depois, eu estava em mais um hospital e o Brasil estava prestes a ultrapassar em número de mortes diárias as vítimas do atentado às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001.

Apesar da situação mais grave da pandemia, eu aprendi que equipamentos de proteção e cuidados básicos eram o suficiente para que pudesse fazer o meu trabalho com segurança. E que nunca foi tão necessário mostrar essa realidade.

O hospital em questão ficava em Ribeirão Pires (Grande SP). Na cidade, oito pessoas já tinham morrido à espera de transferência para uma UTI.

Qualquer repórter sabe que o poder público tem a tendência de esconder fatos negativos, mas a gravidade do quadro fez com que diversas cidades escancarassem a situação como um pedido de socorro. Entramos ali com autorização da prefeitura, que esperava ajuda de outras esferas de poder para realizar as transferências com maior rapidez.

A unidade foi adaptada em um ginásio. Enquanto eu falava com funcionários e pacientes, o repórter-fotográfico Rubens Cavallari registrava com minúcia a enfermaria e o setor com pessoas em estado mais grave, algumas intubadas.

Às vezes, ele ficava para trás naquele labirinto de camas e respiradores. Quando o reencontrei em uma dessas ocasiões, ele estava com a mão no rosto, bastante emocionado.

Nesse instante, ouvi uma profissional do hospital dizer para a outra: “Ele foi embora”. Só então entendi que um paciente, a poucos metros de mim, acabara de morrer —desde o início da pandemia, era a primeira vez que estive presente no momento de um óbito.

A cama do paciente logo foi cercada por um biombo, evitando que outros pacientes pudessem ver que o homem na cama ao lado havia entrado para as estatísticas de mortos.

Antes, Cavallari havia se deparado com o monitor que registra os batimentos cardíacos do paciente. A linha do monitor, geralmente em movimento, formando pequenos picos, agora estava plana e estática. Repórter experiente que já registrou diversas tragédias em sua carreira iniciada em 1986, Cavallari teve que parar para se recompor daquele baque, antes de voltar ao trabalho.

Após dezenas de entrevistas com profissionais que atuam na linha de frente contra o vírus, minha impressão é que, embora pareçam exaustos, têm uma energia contagiante. Momentaneamente, isso parecia ter se esvaído.

A cena de alguém morrendo em hospital de campanha improvisado numa quadra de futebol, sem conhecido por perto, me lembrou muito aqueles filmes de guerra. Só faltou o barulho das bombas.

O homem que morreu ainda não havia sido incluído na lista de espera para a transferência para uma UTI. Mas hospitais de campanha não possuem todos os recursos para pacientes em estado grave, sempre sujeitos a complicações repentinas.

Ao longo de 2020, em época em que as pessoas ainda não morriam esperando por transferências, fui a um hospital na capital que preparava uma despedida aos pacientes com quadros irreversíveis. Após os recursos médicos se esgotarem, parentes entravam paramentados e passavam os últimos momentos com a pessoa, quase sempre inconsciente.

Agora, esse tipo de adeus soa bem mais difícil. Ao sair do hospital onde o paciente tinha ido a óbito, conversei com a parente de uma paciente que havia morrido dias antes. Segundo ela, a mãe piorara muito rápido e precisava ser intubada. Mas, disse ela, não havia aparelho disponível para ajudá-la a continuar respirando. A sentença de morte se cumpriu no dia seguinte.

Os enterros das pessoas com Covid que presenciei parecem mais dolorosos por atropelarem o luto da família. Coveiros, vestidos com roupas similares às de astronautas, fazem parecer que a cena se passa em outro planeta. Parentes apartados, frente a caixão lacrado, que desaparece rápido sob a terra.

A mãe da mulher com quem falei havia proibido os filhos de ir visitá-la no Natal e no seu aniversário com medo de ser contaminada. A família também não pôde ir ao velório.

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