Descrição de chapéu The New York Times genética

Preços assustadores de medicamentos como o Zolgensma desafiam governos

Brasil concordou em pagar o equivalente a cerca de US$ 1 milhão por cada tratamento

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Rebecca Robbins Stephanie Nolen
Recife | The New York Times

Suhellen Oliveira da Silva estava grávida de seis meses quando soube que a criança que carregava tinha a mesma doença que deixou seu filho primogênito paralítico e quase mudo. Mas desta vez havia um tratamento disponível que poderia fazer uma enorme diferença. Esse bebê poderia ter uma vida normal.

O problema era o preço: o tratamento custava o equivalente a US$ 1,7 milhão (R$ 8,7 milhões), e o sistema público de saúde do Brasil, onde vive a família, recusava-se a pagar.

Então Silva procurou a Justiça —e ganhou. Um juiz decidiu que o governo deveria comprar a terapia para seu filho mais novo, Levi.

Hoje, Levi, 2, bate palmas e rasteja —coisas que seu irmão mais velho, Lorenzo, 10, nunca conseguiu fazer.

Lorenzo, 10, ao lado de enfermeira na casa família dele em Recife; ele tem atrofia muscular espinhal (AME)
Lorenzo, 10, ao lado de enfermeira na casa família dele em Recife; ele tem atrofia muscular espinhal (AME) - Dado Galdieri/The New York Times

O tratamento, chamado Zolgensma, uma infusão de uso único, está entre os primeiros de uma nova classe de terapias genéticas de ponta que são uma grande promessa para pessoas com condições fatais ou debilitantes —por preços extremamente altos. Seu fabricante, a empresa farmacêutica Novartis, negociou acordos com sistemas nacionais de saúde e seguradoras para obter a cobertura do medicamento em muitos países ricos.

Agora, com a desaceleração das vendas, a empresa está pressionando para obter ampla cobertura em países de renda média, como o Brasil, cujos sistemas de saúde pública são frequentemente frágeis e subfinanciados.

O Zolgensma, que trata uma doença genética rara conhecida como atrofia muscular espinhal, ou AME, foi durante algum tempo o tratamento mais caro do mundo. Tornou-se um teste observado de perto para saber se essas terapias podem conquistar ampla cobertura em todo o mundo e quais seriam as compensações.

A experiência do Brasil com o Zolgensma mostra os desafios que os preços assustadores dessas terapias representarão para governos e seguradoras com orçamentos limitados. Esses desafios estão prestes a se multiplicar nos próximos anos, à medida que mais tratamentos semelhantes se tornarem disponíveis para grupos maiores de pacientes.

Depois de mais de cem ações judiciais bem-sucedidas de famílias que obrigaram o SUS a pagar pelo tratamento de seus filhos, o governo anunciou em dezembro que começaria a cobrir o Zolgensma para bebês com casos mais graves de AME ainda neste ano.

O governo concordou em pagar o equivalente a cerca de US$ 1 milhão (R$ 5,14 milhões) por tratamento –muito menos do que alguns outros governos estão pagando, mas ainda assim uma quantia impressionante para o sobrecarregado sistema brasileiro.

Em audiência do governo sobre a questão da cobertura, a deputada Adriana Ventura (Novo) expressou solidariedade às famílias que procuram o tratamento, mas disse: "Também não podemos ser irresponsáveis e aprovar algo que não é sustentável em longo prazo." Ela acrescentou que a preocupação é que "para dar a um, você precise tirar o básico de milhões de outros".

Os gastos com o Zolgensma já consumiram uma parte extremamente desproporcional dos recursos. Uma análise liderada por uma pesquisadora do órgão regulador de medicamentos do Brasil descobriu que os gastos ordenados pelo tribunal nos primeiros 14 meses de disponibilidade do Zolgensma poderiam ter pago por mais de 4 milhões de doses da vacina contra Covid-19.

Entre as mais inacessíveis estão as terapias genéticas, como o Zolgensma, que prometem transformar doenças hereditárias com um tratamento único.

O preço de tabela do Zolgensma, de US$ 2,1 milhões nos Estados Unidos em 2019, considerado o mais alto de todos os tempos, já foi superado quatro vezes, e muitos outros tratamentos que devem ser igualmente caros estão no horizonte.

"Esta é a tão esperada onda de inovação que ajudará a lidar com algumas condições fatais e com risco de vida", disse Steven Pearson, presidente do Instituto para Revisão Clínica e Econômica, que avalia o valor dos medicamentos. "Mas, se vier de uma vez e os pagamentos não puderem ser prolongados, terá um efeito esmagador."

Esta é a tão esperada onda de inovação que ajudará a lidar com algumas condições fatais e com risco de vida

Steven Pearson

presidente do Instituto para Revisão Clínica e Econômica

Preços recordes para terapias genéticas escaparam em grande parte das críticas que se seguiram a outras decisões de preços da indústria. O sentimento reflete quão poderosas são muitas das terapias genéticas —os médicos às vezes chegam a chamá-las de curas— e sua posição original como tratamentos únicos. Essa terapia tem apenas uma chance de ganhar dinheiro e, em alguns casos, pode substituir tratamentos crônicos que, de outra forma, seriam administrados durante o resto da vida do paciente a um custo cumulativo muito maior.

Ainda assim, para os países de renda média, "se os benefícios dessas terapias forem imediatos em termos de saúde, mas as economias potenciais acontecerem no futuro, essa matemática pode não funcionar", disse Rena Conti, economista de saúde da Escola de Administração Questrom da Universidade de Boston.

Tay Salimullah, executivo da Novartis, disse que a empresa trabalhou em estreita colaboração com governos e planos de saúde avaliando a possibilidade de cobrir o Zolgensma, em alguns casos permitindo que eles parcelassem o pagamento ao longo do tempo, como uma hipoteca, ou oferecendo um corte de preço se o tratamento não der certo.

No Brasil, o acordo com a Novartis prevê que o governo divida o pagamento de cada tratamento em cinco parcelas iguais ao longo de quatro anos. Se um paciente morrer, precisar ser ventilado permanentemente ou for incapaz de manter certas funções motoras dois anos após receber o Zolgensma, o governo não será obrigado a fazer os pagamentos subsequentes.

'Este garoto tem futuro'

Até seis anos atrás, não havia tratamentos aprovados para AME, que afeta cerca de 1 em 10 mil recém-nascidos. Bebês com a forma mais grave da doença foram mandados para casa e suas famílias acabaram instruídas a se prepararem para a morte.

O Zolgensma e dois outros medicamentos aprovados desde 2016 abriram possibilidades antes inimagináveis para pacientes com AME. "Estou dizendo aos pais para continuarem investindo dinheiro no fundo da faculdade porque esse garoto tem futuro", disse o médico Thomas Crawford, que trata pacientes com AME no Johns Hopkins Medicine.

O Zolgensma funciona substituindo o gene ausente ou disfuncional que causa AME por uma cópia funcional do gene. Foi administrado a mais de 2.500 crianças e aprovado para uso em 46 países. A Novartis diz que mais de 35 desses países têm "vias de acesso" implementadas.

Estudos mostram que o Zolgensma pode impedir que bebês e crianças pequenas continuem perdendo células nervosas que controlam o movimento muscular, evitando mais declínio, mas não pode restaurar a função motora ou muscular que as crianças mais velhas já perderam.

Se Zolgensma for administrado logo após o nascimento, as crianças podem não desenvolver deficiências significativas. As que recebem a droga quando são um pouco mais velhas podem evitar um tubo de alimentação ou respiração e podem ser capazes de algum movimento, em vez de passarem a vida imóveis como Lorenzo.

Na maioria dos casos, os pacientes conseguiram acessar o Zolgensma sem problemas nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Canadá, segundo médicos e grupos de pacientes de lá. Mas vários pais americanos e seus advogados descreveram atrasos de meses quando os planos de saúde falharam temporariamente, e as crianças começaram a mostrar sinais de AME enquanto esperavam pelo tratamento.

No Brasil, onde mais da metade da população de cerca de 216 milhões depende do sistema público de saúde, as famílias que procuram o Zolgensma para seus filhos tentam arrecadar fundos por meio de sites de "vaquinha" (crowdfunding) ou obtê-lo gratuitamente por meio de um ensaio clínico.

Mas, na maioria das vezes, elas recorreram aos tribunais. Até novembro, juízes obrigaram o sistema de saúde brasileiro a pagar 102 tratamentos com Zolgensma a um custo médio equivalente a US$ 1,6 milhão, segundo o Ministério da Saúde.

Direito à saúde

Silva nunca tinha ouvido falar de AME quando Lorenzo foi diagnosticado aos seis meses, em 2013. Ele estava se desenvolvendo normalmente, e então seu progresso parou repentinamente. Os médicos disseram que não havia nada a ser feito.

Quando Silva soube em 2019 que estava inesperadamente grávida de Levi, os médicos disseram que ele poderia não ter deficiências de AME se ela conseguisse Zolgensma para ele logo após o nascimento.

A família lutava para sobreviver. Silva largou o emprego de agente de viagens para lutar por atendimento domiciliar e terapias em tempo integral para Lorenzo; seu marido, Azen Balbino, teve períodos de desemprego durante a recessão brasileira. Eles sabiam que precisariam contar com um processo de judicialização, no qual eles processam o governo federal invocando o direito constitucionalmente protegido à saúde para forçar o sistema público a pagar por um medicamento ou terapia que de outra forma não forneceria.

Enquanto Silva ainda estava grávida, ela contou com a ajuda de Viviane Guimarães, uma advogada de Recife (PE), que aceitou seu caso —os advogados em tais batalhas judiciais normalmente não cobram das famílias que representam. Quando o governo perde um caso, pode ser condenado a pagar uma taxa ao advogado da família vencedora, mas esse pagamento é retido quando o governo apela de uma decisão, como aconteceu no processo de Levi.

Quando Guimarães se apresentou ao juiz para defender uma terapia de alto custo, argumentou que economizaria dinheiro do governo, em comparação com outros medicamentos que Levi deveria tomar durante toda a vida e com o custo de todos os cuidados de que precisaria sem a terapia única.

Lorenzo recebe três tipos de terapia todos os dias. Ele assiste a desenhos animados enquanto um fisioterapeuta faz uma visita duas vezes por dia para pressionar seu peito e sugar as secreções que de outra forma o sufocariam.

Ele se comunica com Silva por meio de um sussurro ofegante e piscando e apertando a bochecha que ainda consegue mover. Enquanto isso, Levi escala as pernas inertes de Lorenzo, cantando junto com a televisão e dando ordens imperiosas de coisas como picolés e biscoitos para a auxiliar de saúde, uma das três que se revezam para ficar ao lado da cama de Lorenzo 24 horas por dia.

Embora Levi não tenha atingido todos os marcos normais de desenvolvimento de uma criança de sua idade, ele é móvel e falante. Faz terapia ocupacional e fisioterapia diariamente e continua progredindo no desenvolvimento físico.

Quando Guimarães ganhou uma decisão favorável na batalha judicial de Levi, o governo federal teve que separar o dinheiro para comprar o Zolgensma. Silva correu ao banco para pegar o dinheiro, que enviou para uma conta da Novartis na Irlanda, a qual efetuou o envio do medicamento. Ela e o marido correram para São Paulo com Levi para ficar de prontidão em um hospital disposto a fazer a infusão. Ele recebeu o minúsculo frasco de 47,8 mililitros de Zolgensma aos 16 meses de idade.

Toda vez que ela vê seus dois filhos juntos, Silva se lembra do poder impressionante do Zolgensma. Seus momentos mais felizes, disse, acontecem quando ela está com Levi e ele estende a mão, toca seu rosto para chamar a atenção e exige "Mamãe, mamãe", como qualquer outra criança.

"Levi fala como uma criança que não tem AME", disse ela.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

Colaboraram Lis Moriconi no Rio de Janeiro e André Spigariol em Brasília

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