Vídeo descontextualiza trechos antigos de telejornais para enganar sobre cloroquina

Reportagens que alertam para a ineficácia ou riscos foram cortadas pelo autor da peça de desinformação

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São Paulo

É enganosa a montagem que circula pelo Kwai com trechos de diversos telejornais brasileiros sobre o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina contra a Covid-19. As matérias usadas no vídeo são antigas e, ainda assim, nenhuma delas afirma que os medicamentos são eficazes no combate ao coronavírus, diferentemente do que tenta convencer o autor da peça de desinformação.

Os trechos, como verificado pelo Projeto Comprova, foram editados de modo que os alertas a respeito da ineficácia dos remédios fossem omitidos. Além disso, há trechos de matérias falando sobre os riscos do uso do medicamento contra a Covid que tiveram o sentido completamente invertido – a montagem faz parecer que as reportagens atestam a segurança e eficácia dos fármacos, o que não é verdade.

A OMS (Organização Mundial de Saúde), que decretou no último dia 5 de maio de 2023 o fim da emergência de saúde da pandemia de Covid-19, considera que todo país é soberano para decidir sobre protocolos clínicos de uso de medicamentos, mas alerta que não há evidência científica de que a cloroquina e a hidroxicloroquina sejam eficazes e seguros para o tratamento da Covid-19.

Mulher de avental e máscara vacina outra mulher de máscara. Estão embaixo de uma cobertura azul
Vacinação contra a Covid-19 em São Paulo; diferentemente dos imunizantes, cloroquina não tem eficácia comprovada contra a doença - Danilo Verpa - 9.nov.2022/Folhapress

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Alcance

O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. O vídeo investigado teve mais de 7,9 mil visualizações em apenas uma postagem no Kwai até 11 de maio de 2023.

Como verificamos

O primeiro passo foi descobrir se havia mais checagens sobre o mesmo tema. O Comprova localizou verificações feitas pelo UOL, Estadão, Aos Fatos e AFP. Em seguida, fez buscas no Google pelas informações básicas ditas pelos âncoras dos telejornais utilizados na peça de desinformação, o que levou aos mesmos trechos identificados por outras agências na checagem de vídeos parecidos.

O Comprova assistiu a todas as matérias utilizadas na montagem para compreender o contexto em que foram feitas e o que diziam. Por fim, foram buscadas informações atualizadas junto à OMS a respeito do uso da cloroquina e hidroxicloroquina contra o coronavírus.

Verificação

O vídeo investigado é uma montagem com trechos de oito telejornais do Brasil, o título de uma coluna da revista Veja e imagens com ataques à imprensa. Nenhuma das matérias usadas no vídeo, contudo, defende a cloroquina ou a hidroxicloroquina como opção de medicamento contra a Covid-19 —pelo contrário, elas alertam para os riscos e para a ineficácia das substâncias, mesmo nas ocasiões em que o Ministério da Saúde, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), tentou validar o que passou a chamar de tratamento precoce, cuja ineficácia já é conhecida. Veja o que realmente diz cada um dos vídeos usados no conteúdo desinformativo:

Vídeo 1

O primeiro vídeo foi retirado de uma matéria exibida pelo Jornal da Band em 22 de janeiro de 2022. Na ocasião, o jornal noticiou que uma nota técnica do Ministério da Saúde dizia que a cloroquina funcionava contra a Covid-19, enquanto as vacinas não funcionam. O trecho usado na montagem, contudo, omite a frase dita a seguir pelo âncora do jornal: "O documento contraria estudos e especialistas ouvidos pelo próprio Ministério".

Vídeo 2

O segundo vídeo exibido foi retirado de uma matéria do Jornal da Record de 23 de maio de 2020, mas a frase completa dita pela âncora do telejornal não foi exibida. No trecho usado, a apresentadora Janine Borba fala de um estudo sobre o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina publicado pela revista The Lancet, mas a fala dela é cortada antes que ela explique o que o estudo diz: que o uso dos dois medicamentos contra a Covid-19 aumentou o risco de morte pela doença.

Vídeo 3

Em seguida, aparece um trecho de uma matéria exibida pelo Jornal da Cultura em 17 de julho de 2020 sobre uma orientação do Ministério da Saúde para que a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) recomendasse o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento inicial da Covid-19. O vídeo também é cortado antes que a apresentadora Karyn Bravo diga que a orientação do Ministério da Saúde vai na contramão da maioria dos estudos divulgados até então, que apontavam ineficácia dos dois medicamentos para combater o coronavírus.

Vídeo 4

O quarto vídeo mostra um trecho de uma matéria do SBT Brasil de 20 de março de 2020, no início da pandemia, sobre a falta de medicamentos à base de hidroxicloroquina nas farmácias brasileiras após o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, citar o remédio como eficaz no combate ao coronavírus. Na montagem, ficou de fora o trecho em que os jornalistas afirmam que o remédio é comumente usado contra doenças como lúpus e malária. A fala do médico infectologista Marcos Boulos, entrevistado na matéria, também foi omitida. Ele diz que o remédio "não tem uma ação específica contra vírus".

Vídeo 5

O próximo vídeo mostra o início de uma matéria exibida pelo Jornal da Record em 23 de julho de 2020 sobre a divulgação de um estudo feito por um grupo de 55 hospitais brasileiros relacionado ao uso da hidroxicloroquina. A fala da jornalista Christina Lemos (a partir de 16:58) é cortada antes que ela afirme que o consórcio de hospitais concluiu que "o remédio não é eficaz para pacientes com sintomas leves e moderados da Covid-19".

Vídeo 6

O sexto vídeo mostra um trecho do programa CNN Domingo Tarde de 23 de janeiro de 2022, em que o apresentador Kenzô Machida fala sobre a publicação de uma nota técnica do Ministério da Saúde, assinada pelo secretário de Ciência e Tecnologia e Inovação em Insumos Estratégicos em Saúde, Hélio Angotti Neto, afirmando que havia estudos que mostravam que a hidroxicloroquina era eficaz contra a Covid-19, mas a vacina não era. Mais uma vez, a montagem desconsidera o restante da matéria, que inclui entrevista com Meiruze Freitas, diretora da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Ela tratou a nota técnica como "uma grande surpresa" e reiterou que as vacinas têm qualidade, eficácia e segurança contra a Covid-19. A nota técnica foi alterada em seguida, conforme publicou o UOL.

Vídeo 7

O sétimo vídeo a aparecer na montagem mostra um trecho do Jornal da Record de 4 de junho de 2020. A parte exibida mostra a apresentadora Adriana Oliveira afirmando que a revista científica The Lancet havia publicado uma retratação dos autores de um estudo que associava risco de morte à cloroquina. A retratação foi publicada, mas não porque o medicamento foi considerado eficaz contra a Covid, mas porque os pesquisadores disseram que não podiam mais garantir a veracidade dos dados usados nos estudos sobre o medicamento. Esta informação foi omitida da montagem.

Vídeo 8

O último vídeo da montagem usa dois trechos de uma matéria do SBT Brasil de 24 de agosto de 2020. No primeiro, a apresentadora Rachel Sheherazade faz referência a uma frase dita pelo então presidente, Jair Bolsonaro, em defesa da hidroxicloroquina. Em seguida, é exibida a própria fala do presidente, afirmando que o medicamento foi politizado e poderia ter evitado mortes. A montagem omite o trecho da matéria em que se explica que, segundo a OMS, a cloroquina e a hidroxicloroquina não são eficazes ou seguras contra a Covid-19.

Coluna

Após a sequência de trechos de telejornais, há um print do título de uma coluna publicada por Vilma Gryzinski na revista Veja sobre a origem do Sars-CoV-2 e o uso de máscaras. O texto, contudo, não cita a cloroquina ou a hidroxicloroquina, não defende o uso dos medicamentos contra a Covid-19, nem que eles são eficazes contra a doença.

O que diz o responsável pela publicação

Não foi possível enviar mensagem ao autor do conteúdo através do Kwai. O usuário indica um link para um perfil no Instagram que não está disponível.

O que podemos aprender com esta verificação

Ao longo de toda a emergência em saúde da pandemia de Covid-19, inúmeros conteúdos desinformativos a respeito do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina contra o coronavírus foram desmentidos por agências de checagem. Além disso, a imprensa e autoridades em saúde alertaram para a falta de comprovação científica no uso dos dois medicamentos contra a nova doença.

No vídeo investigado, não há referências a datas, o que pode indicar que o material seja antigo, e os cortes bruscos feitos no conteúdo não permitem que o usuário compreenda o contexto completo em que as informações foram passadas, o que também pode indicar uma manipulação.

Ao se deparar com conteúdos como esse, o usuário deve fazer uma busca de informações em sites confiáveis e em organizações de saúde especializadas, como sociedades de infectologia, virologia, epidemiologia ou junto à própria Organização Mundial de Saúde, que reúne informações atualizadas sobre o assunto.

Por que investigamos

O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984. Sugestões e dúvidas relacionadas a conteúdos duvidosos também podem ser enviadas para a Folha pelo WhatsApp 11 99486-0293.

Outras checagens sobre o tema

Este mesmo conteúdo também foi checado pelo UOL Confere, Aos Fatos, Estadão Verifica e AFP Checamos.

O Comprova já mostrou que era enganosa uma postagem que dizia que um estudo de Harvard havia comprovado a eficácia da hidroxicloroquina contra o coronavírus, que estudos fraudados não deslegitimam artigos que comprovam ineficácia da cloroquina contra a Covid-19 e que um estudo com hidroxicloroquina não comprova eficácia no "tratamento precoce".

A investigação desse conteúdo foi feita por UOL e Estadão publicada em 11 de maio pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 41 veículos na checagem de conteúdos virais. Foi verificada por Folha, NSC, O Popular, Grupo Sinos, Plural Curitiba, A Gazeta e Correio Braziliense.

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