Descrição de chapéu The New York Times

Ciência ainda não sabe por que Ozempic funciona para perda de peso

Modo como novas drogas agem no organismo continua sendo mistério pouco compreendido

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Gina Kolata
The New York Times

De vez em quando surge uma droga que tem o potencial de mudar o mundo. Médicos especialistas dizem que as últimas a oferecer essa possibilidade são os novos medicamentos para obesidadeOzempic, Wegovy, Mounjaro e outros que podem estar chegando em breve ao mercado.

É cedo, mas parece que nunca existiu nada como essas drogas.

"Modificadoras de jogo", disse Jonathan Engel, historiador de medicina e política de saúde do Baruch College, em Nova York.

A obesidade afeta quase 42% dos adultos americanos; no entanto, "estivemos impotentes", disse Engel. A pesquisa sobre possíveis tratamentos médicos para obesidade falhou. As empresas farmacêuticas perderam o interesse, com muitos executivos pensando —como a maioria dos médicos e o público— que a obesidade era uma falha moral e não uma doença crônica.

Caneta injetora do Ozempic, um dos novos medicamentos criados para o tratamento de obesidade
Ozempic é um dos novos medicamentos criados para o tratamento de obesidade - Ryan David Brown - 23.mai.22/NYT

Enquanto outras drogas descobertas nas últimas décadas para doenças como câncer, doenças cardíacas e Alzheimer foram encontradas por meio de um processo lógico que levou a alvos claros, o caminho que levou às drogas para obesidade não foi assim. Na verdade, muito sobre elas permanece envolto em mistério. Os pesquisadores descobriram por acaso que expor o cérebro a um hormônio natural em níveis nunca vistos na natureza provocava perda de peso. Eles realmente não sabem o porquê.

"Todos gostariam de dizer que deve haver alguma explicação ou ordem lógica nisso que permita previsões sobre o que funcionará", disse David D'Alessio, chefe de endocrinologia da Duke, que presta consultoria para a Eli Lilly, entre outros. "Até agora não há."

Embora as drogas pareçam seguras, os especialistas em medicina da obesidade pedem cautela porque —assim como os medicamentos para níveis elevados de colesterol ou pressão alta— as drogas para obesidade devem ser tomadas indefinidamente, ou os pacientes recuperarão o peso que perderam.

Susan Yanovski, codiretora do escritório de pesquisa sobre obesidade do Instituto Nacional de Diabetes e Doenças Digestivas e Renais, alertou que os pacientes teriam que ser monitorados quanto a efeitos colaterais raros, mas graves, especialmente porque os cientistas ainda não sabem por que essas drogas funcionam.

Mas, acrescentou ela, a própria obesidade está associada a uma longa lista de problemas médicos graves, incluindo diabetes, doenças hepáticas, doenças cardíacas, câncer, apneia do sono e dores nas articulações.

"É preciso ter em mente as doenças graves e o aumento da mortalidade de pessoas com obesidade", disse ela.

As drogas podem causar náuseas e diarreia passageiras em algumas pessoas. Mas seu efeito principal é o que importa. Os pacientes dizem que perdem o desejo constante por comida e se satisfazem com porções muito menores. Eles perdem peso porque naturalmente comem menos, não porque queimam mais calorias.

E os resultados de um ensaio clínico divulgados na semana passada indicam que o Wegovy pode fazer mais do que ajudar as pessoas a emagrecer. Também pode proteger contra complicações cardíacas, como infartos e derrames.

Mas por que isso acontece continua sendo pouco compreendido.

"As empresas não gostam da expressão ‘tentativa e erro’", disse Daniel Drucker, que estuda diabetes e obesidade no Instituto de Pesquisa Lunenfeld-Tanenbaum, em Toronto, e que presta consultoria para a Novo Nordisk e outras empresas. "Eles gostam de dizer: 'fomos extremamente inteligentes na maneira como projetamos a molécula'", disse Drucker. Mas "eles tiveram sorte", continuou.

Outras descobertas

Na década de 1970, os tratamentos para obesidade eram a última coisa na mente de Joel Habener. Ele era um endocrinologista acadêmico iniciando seu próprio laboratório na Escola de Medicina de Harvard e procurando um projeto de pesquisa desafiador, mas factível.

Ele escolheu diabetes. A doença é causada por altos níveis de açúcar no sangue e geralmente é tratada com injeções de insulina, um hormônio secretado pelo pâncreas que ajuda as células a armazenar açúcar. Mas uma injeção de insulina faz o açúcar no sangue despencar, mesmo que os níveis já estejam baixos. Os pacientes devem planejar cuidadosamente as injeções porque níveis muito baixos de açúcar no sangue podem resultar em confusão, tremores e até perda de consciência.

Dois outros hormônios —somatostatina e glucagon— também desempenham um papel na regulação do açúcar no sangue, e pouco se sabia sobre como eles são produzidos. Habener decidiu estudar os genes que direcionam as células para produzir glucagon.

Isso o levou a uma verdadeira surpresa. No início dos anos 1980, ele descobriu um hormônio, GLP-1, que regula primorosamente o açúcar no sangue. Ele age apenas nas células produtoras de insulina do pâncreas e somente quando o açúcar no sangue sobe muito.

Era perfeito, em teoria, como tratamento direcionado para substituir as injeções de insulina, semelhantes a marretadas.

Outro pesquisador, Jens Juul Holst, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, tropeçou de forma independente na mesma descoberta. Mas havia um problema: quando o GLP-1 era injetado, ele desaparecia antes de chegar ao pâncreas. Precisava durar mais.

Drucker, que liderou os esforços de descoberta do GLP-1 na equipe de Habener, trabalhou durante anos no desafio. Era "um campo bastante solitário", disse ele.

Acaso bem-vindo

O sucesso veio de uma descoberta casual que não foi apreciada na época.

Em 1990, John Eng, pesquisador do Centro Médico de Assuntos dos Veteranos (VA) dos Estados Unidos em Nova York, estava procurando novos hormônios interessantes na natureza que pudessem ser úteis para medicar as pessoas.

Caneta injetora da Byetta, uma droga usada no tratamento do diabetes
Caneta injetora da Byetta, uma droga usada no tratamento do diabetes - Peter DaSilva - 23.fev.06/NYT

Ele foi atraído pelo venenoso lagarto monstro-de-gila quando soube que, de alguma forma, mantinha seus níveis de açúcar no sangue estáveis quando não tinha muito o que comer, segundo um relatório do Instituto Nacional de Saúde, que financiou seu trabalho. Então, Eng decidiu procurar por produtos químicos na saliva dos lagartos. Encontrou uma variante do GLP-1 que durava mais.

Eng disse ao The New York Times em 2002 que o VA não quis patentear o hormônio. Então Eng patenteou-o e licenciou-o para a Amylin Pharmaceuticals, que começou a testá-lo como um medicamento para diabetes. A droga, exenatida ou Byetta, começou a ser vendida nos Estados Unidos em 2005.

Mas o Byetta precisava ser injetado duas vezes ao dia, um verdadeiro desestímulo ao seu uso. Os químicos das empresas farmacêuticas buscavam versões ainda mais duradouras do GLP-1.

Na Novo Nordisk, os químicos começaram usando um truque bem conhecido. Eles ligaram parcialmente o GLP-1 a uma proteína do sangue que o mantinha estável para permanecer em circulação por pelo menos 24 horas. Mas quando o GLP-1 se desliga da proteína as enzimas no sangue rapidamente a degradam. Assim, os químicos tiveram que alterar os blocos de construção do hormônio —uma cadeia de aminoácidos— para encontrar uma variante mais durável.

Após tentativas e erros tediosos, a Novo Nordisk produziu liraglutida, uma droga GLP-1 que durava o suficiente para permitir injeções diárias. Eles a chamaram de Victoza, e a Administração de Alimentos e Drogas (FDA, na sigla em inglês) a aprovou como um tratamento para diabetes em 2010.

Ela tinha um efeito colateral inesperado: leve perda de peso.

Ratos famintos

A Novo Nordisk, que hoje detém 45,7% do mercado global de insulina, considerava-se uma empresa de diabetes. Ponto.

Mas uma cientista da companhia, Lotte Bjerre Knudsen, não conseguia parar de pensar em resultados tentadores de estudos com liraglutida, a droga GLP-1 que durava o suficiente para ser injetada apenas uma vez por dia.

No início dos anos 1990, pesquisadores da Novo, estudando ratos implantados com tumores de células do pâncreas que produziam grandes quantidades de glucagon e GLP-1, notaram que os animais quase paravam de comer.

"Esses ratos passaram fome", disse Knudsen numa série de vídeos divulgada pela Fundação Novo Nordisk. "Então, percebemos que havia algo em alguns desses peptídeos que era realmente importante para a regulação do apetite."

Outros estudos de pesquisadores acadêmicos descobriram que os ratos perdiam o apetite se o GLP-1 fosse injetado em seus cérebros. Humanos que receberam GLP-1 por via intravenosa comeram 12% menos em um bufê de almoço do que os que receberam placebo.

Então, por que não estudar a liraglutida tanto como medicamento para diabetes quanto para obesidade?, perguntou-se Knudsen.

Ela enfrentou resistência, em parte porque alguns executivos da empresa estavam convencidos de que a obesidade resultava da falta de força de vontade. Um dos defensores da investigação do GLP-1 para perda de peso, Mads Krogsgaard Thomsen, atual CEO da Fundação Novo Nordisk e ex-diretor científico da empresa, disse no vídeo postado pela fundação que "teve que gastar meio ano convencendo meu CEO de que a obesidade não é apenas uma questão de estilo de vida".

Knudsen também observou que a divisão de negócios da empresa lutou com a ideia de promover a liraglutida para dois propósitos distintos.

"Ou é para diabetes ou para perda de peso", lembrou ela na série de vídeos da fundação.

Finalmente, depois que a liraglutida foi aprovada em 2010 para diabetes, a proposta de Knudsen de estudar o medicamento para perda de peso foi adiante. Após ensaios clínicos, a FDA o aprovou como Saxenda para obesidade em 2014. A dose era cerca de duas vezes a usada para diabetes. Os pacientes perderam cerca de 5% de seu peso, uma quantidade modesta.

Mas o doutor Martin Holst Lange, vice-presidente executivo de desenvolvimento da Novo Nordisk, disse em entrevista por telefone que era pelo menos tão boa quanto outras drogas para perda de peso e sem efeitos colaterais como infartos, derrames e mortes.

"Ficamos realmente empolgados", disse.

Além do diabetes

Apesar do progresso na perda de peso, a Novo Nordisk continuou se concentrando no diabetes, tentando encontrar maneiras de produzir um GLP-1 mais duradouro para que os pacientes não precisassem da injeção todos os dias.

O resultado foi uma droga diferente do GLP-1, a semaglutida, que durava o suficiente para que os pacientes a injetassem apenas uma vez por semana. Foi aprovada em 2017 e agora é comercializada como Ozempic.

Também causou perda de peso —15%, que é três vezes a perda com Saxenda, a droga usada uma vez por dia, embora não houvesse razão óbvia para isso. De repente, a empresa tinha o que parecia ser um tratamento revolucionário para a obesidade.

Mas a Novo Nordisk não poderia comercializar Ozempic para perda de peso sem a aprovação da FDA para esse uso específico.

Em 2018, um ano após a aprovação do Ozempic para diabetes, a empresa iniciou um ensaio clínico. Em 2021, a Novo Nordisk obteve aprovação da FDA para comercializar o mesmo medicamento para obesidade com uma injeção semanal em uma dose máxima mais alta. Ela o chamou de Wegovy.

Mesmo antes que o Wegovy fosse aprovado, porém, as pessoas começaram a tomar Ozempic para obesidade. A Novo Nordisk, em seus comerciais de Ozempic, mencionou que muitos que o tomaram emagreceram.

A insinuação acabou sendo mais que suficiente. Logo, disse Jeffrey Mechanick, endocrinologista da Escola de Medicina Icahn, do Mount Sinai, os pacientes aderiram ao Ozempic. Os médicos o prescreveram sem receita para pessoas que não tinham diabetes.

"Havia um certo jogo acontecendo", disse Mechanick, com alguns médicos codificando pacientes como pré-diabéticos para ajudá-los a obter cobertura do seguro.

Em 2021, alimentada pelas redes sociais, um frenesi geral para perda de peso e marketing agressivo da Novo Nordisk, a notícia de que Ozempic fazia as pessoas perderem peso atingiu um ponto crítico, disse Caroline Apovian, codiretora do Centro de Controle de Peso e Bem-Estar do Hospital Brigham and Women's e consultora da Novo Nordisk e outras empresas. O Ozempic estava na boca de todos, embora Wegovy fosse o medicamento aprovado naquele ano para obesidade.

Mas o Wegovy o alcançou.

Em julho, médicos dos EUA preencheram cerca de 94 mil prescrições por semana para Wegovy, em comparação com cerca de 62 mil para Ozempic. Wegovy está com tal demanda, porém, que a empresa não consegue fabricar o suficiente, disse sua porta-voz, Ambre James-Brown. Por enquanto, o laboratório aumenta a produção e vende o medicamento apenas na Noruega, Dinamarca, Alemanha e nos Estados Unidos. E nas farmácias desses países o desabastecimento é frequente.

E Apovian, como muitos outros especialistas em medicina da obesidade, agora tem pacientes agendados com um ano de antecedência.

Mais remédios, mais mistérios

A razão pela qual Ozempic e Wegovy são muito mais eficazes do que Saxenda permanece um mistério. Por que uma injeção uma vez por semana produziria muito mais perda de peso do que uma injeção diária?

As drogas, disse Randy Seeley, pesquisador de obesidade da Universidade de Michigan, não estão corrigindo a falta de GLP-1 no corpo —as pessoas com obesidade produzem GLP-1 em abundância. Em vez disso, elas estão expondo o cérebro a níveis hormonais nunca vistos na natureza. Os pacientes que tomam Wegovy estão recebendo cinco vezes a quantidade de GLP-1 que produziriam em resposta a uma ceia de Natal, disse Seeley.

E no cérebro "as drogas vão para lugares inusitados", acrescentou. Elas não estão apenas indo para áreas que envolvem o controle de comer demais.

"Se você estivesse projetando um medicamento, diria que é uma má ideia", afirmou Seeley, que prestou consultoria para a Novo Nordisk e a Eli Lilly, entre outras. Os projetistas de medicamentos buscam precisão —um medicamento deve ir apenas para as células onde é necessário.

O GLP-1, por causa de sua estrutura química, não deveria nem mesmo entrar em algumas áreas do cérebro onde ele se infiltra. "Ninguém entende isso", disse Seeley.

Wegovy, porém, é apenas o começo. Espera-se que o medicamento para diabetes da Lilly, tirzepatide ou Mounjaro, obtenha a aprovação da FDA para obesidade este ano. Ele liga o GLP-1 a outro hormônio intestinal, o GIP.

O GIP, por si só, produz uma perda de peso modesta, na melhor das hipóteses. Mas a combinação de dois hormônios pode permitir que as pessoas percam em média cerca de 20% de seu peso.

"Ninguém entende completamente por quê", disse Drucker.

A Lilly tem outra droga, retatrutide, que, embora ainda em estágios iniciais de teste, parece provocar uma perda de peso média de 24%.

A droga experimental da Amgen, AMG 133, poderia ser melhor, mas é ainda mais complicada. Ela liga o GLP-1 a uma molécula que bloqueia o GIP.

Não há uma explicação lógica da razão pela qual abordagens aparentemente opostas funcionariam.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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