Descrição de chapéu Projeto Saúde Pública

Goiás rastreia pacientes que cometeram crimes para tratá-los longe de manicômios

Estado já funciona sem hospitais de custódia, modelo que CNJ quer estender para todo o país

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Goiânia

Anderson Paiva, 41, teve uma infância tranquila enquanto vivia no Tocantins, onde nasceu. Mas quando era adolescente seu pai se separou da mãe e, a partir daí, não ajudou mais a família. O filho não lidou bem com a ruptura e passou a desobedecer a mãe, Vera Lícia dos Santos, 60.

Mãe e filho não vivem mais lá. Há anos, estabeleceram-se em Goiás. Foi na capital desse estado que Anderson, pouco depois da maioridade, praticou um assalto a mão armada e foi preso. À época, ele tinha uma companheira e um filho.

Por um tempo, a companheira o visitava na prisão. Mas isso não durou muito, pois ela rompeu o relacionamento. Ele desenvolveu depressão. "Eu ali preso, muito angustiado, triste, sem uma companhia. Eu me sentia solitário. Sabe o que eu fazia? Drogas. Usava todos os dias", lembra Anderson.

Sua saúde mental se deteriorou mais, até chegar a um quadro de esquizofrenia. Enquanto isso, ele continuava preso e sem acesso a um tratamento mental adequado. Sua advogada conseguiu, então, uma medida para inseri-lo no Paili (Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator). Aceito no projeto, cerca de dois anos atrás, ele deixou a prisão.

rosto de homem negro que está de lado; o rosto dele está parcialmente coberto por uma faixa de cor lilás
Anderson Paiva, 41, é um paciente vinculado ao Paili, em Goiás - Zanone Fraissat/Folhapress

O programa goiano começou a ser pensado em meados de 1996 e saiu do papel em 2006. Vinculado à Secretaria de Estado da Saúde, ele atende pessoas em medida de segurança —quando alguém comete um crime, mas é considerado inimputável, ou seja, não pode ser responsabilizado por seu atos. Além disso, recebe aquelas que apresentaram sofrimento mental durante o cumprimento da pena, a exemplo de Anderson.

Com 355 pacientes atendidos atualmente, o Paili foca o cuidado ambulatorial de saúde mental dos pacientes, como acompanhamento deles em Caps (Centros de Atenção Psicossocial). Em casos de crises, as pessoas atendidas podem ser internadas em leitos psiquiátricos até sua estabilização. Depois, tendem a voltar ao acompanhamento ambulatorial. A adoção de medicamentos também é uma possibilidade.

Esse modelo faz com que não existam manicômios judiciais em Goiás. Também não dispõem de hospitais de custódia o Distrito Federal, Acre, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Roraima e Tocantins.

Os demais estados devem fechar seus hospitais de custódia até maio do ano que vem, conforme resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). A partir desta terça (15), as instituições já não podem mais receber novos pacientes.

Em Goiás, quando um juiz estabelece a medida de segurança, o processo é enviado ao Paili. Já no órgão, o caso é encaminhado a um técnico do programa que tenta localizar o paciente e sua família. É comum esses dados estarem anexados ao processo, mas às vezes é penoso construir o contato inicial.

Hélia Crispim, psicóloga do programa, dá um exemplo recente. Ela recebeu o processo de um paciente sob medida de segurança que vivia no interior do estado e decidiu visitá-lo. Ao chegar à casa do paciente, deparou-se com uma situação de extrema vulnerabilidade social. "É alguém com esquizofrenia que tem o suporte do Caps, de vizinhos, mas sem família."

Com dificuldades, ela localizou parte da família dele na Bahia. Fez contato com um sobrinho do paciente e, ao explicar o quadro, descobriu que os parentes pensavam que ele tivesse desaparecido. Em resposta, o sobrinho disse que consultaria o restante da família a fim de entender como poderiam ajudar o tio.

O suporte familiar, segundo a psicóloga, é uma chave para o sucesso do tratamento psicológico proposto pelo Paili. Pacientes que apresentam melhores resultados normalmente contam com essa rede de apoio. Mas às vezes é difícil convencer os parentes da pessoa sob medida de segurança —entre os crimes cometidos há homicídios ou tentativas de homicídio dentro do núcleo familiar.

ENTENDA O FIM DOS MANICÔMIOS JUDICIÁRIOS

  • O QUE DIZ A RESOLUÇÃO Nº 487 DO CNJ?

    O documento, publicado em fevereiro deste ano, determina que as pessoas que cometeram crimes, mas foram consideradas inimputáveis por causa de doenças ou transtornos psiquiátricos, devem ser atendidas, preferencialmente, fora dos hospitais de custódia, conhecidos como manicômios judiciários

  • DE ONDE SURGIU ESSA DECISÃO?

    O CNJ criou um grupo de trabalho com especialistas de diferentes áreas que envolvem os sistemas de Justiça, saúde e assistência social, e discutiu por dois anos como pôr em prática no Judiciário a política antimanicomial, baseada na Lei Antimanicomial, de 2001

  • HAVERÁ UMA SOLTURA GENERALIZADA DE INTERNOS?

    Não, porque cada uma das pessoas que cumprem medida de segurança nos manicômios judiciários (cerca de 1.800, segundo dados de 2022) receberá acompanhamento médico e social, além de um plano terapêutico singular, que dá preferência ao tratamento ambulatorial, mas também prevê internações ou a permanência em residências terapêuticas

  • QUEM COMETEU ASSASSINATOS E CRIMES SEXUAIS SERÁ SOLTO?

    Especialistas dizem que quem planejou e matou várias vítimas não será automaticamente destinado ao tratamento ambulatorial

  • NÃO É PERIGOSO SOLTAR PESSOAS QUE COMETERAM CRIMES VIOLENTOS?

    A reincidência em projetos como o Programa de Atenção Integrada ao Louco Infrator, em Goiás, é de 5%, contra a faixa de 21% a 39% do primeiro ao quinto ano de detentos no sistema prisional. Ainda, os delitos, segundo especialistas, tendem a não ocorrer se for seguido o tratamento.

  • AS PRÓPRIAS PESSOAS EM TRATAMENTO VÃO CORRER PERIGO?

    O tratamento será feito no território, com o apoio da família, se ainda houver contato, e da comunidade local, como é feito atualmente em estados que já adotaram a mudança há alguns anos, para promover, junto com o monitoramento da Justiça, a reinserção da pessoa na sociedade

Existem ainda os casos em que, mesmo com esse suporte, o paciente não adere ao programa. Celma Martins, coordenadora do Paili, cita o de uma mulher com esquizofrenia que iniciou várias vezes o tratamento, toma os remédios, estabiliza o quadro, mas larga tudo para consumir drogas e viver na rua. "Quando ela vê que a situação está muito braba, volta para casa e para o Caps, mas ela não tem jeito, não estabiliza o quadro."

Uma rede forte de instituições de atenção à saúde, como oferta ampla de Caps, também é um requisito para o resultado positivo do acompanhamento. Dados do Ministério da Saúde de 2022 indicam que há 81 Caps em Goiás. O Paili atua principalmente com esses centros de saúde mental, responsáveis pelo atendimento do paciente. "A gente começa a articular com o Caps como vai ser o acolhimento para iniciar o tratamento", explica Celma.

Um dos Caps é o Bem-Me-Quer, em Aparecida de Goiânia, cidade próxima à capital. A coordenadora da unidade, Marta Paulina, afirma que o acolhimento de um paciente do Paili é o mesmo de alguém que não está no programa. De praxe, a pessoa é integrada a grupos terapêuticos, oficinas e atendimento médico.

Em casos de crise, pode ser necessário estabilizar o paciente em outros centros de saúde e, após isso, ele pode ser internado nos leitos noturnos do Caps. Também há a possibilidade de a pessoa ficar durante o dia na instituição, até voltar ao padrão dos grupos terapêuticos semanais.

A única diferença de um paciente regular do Caps para um do Paili é o envio de relatórios. Isso porque o programa encaminha periodicamente uma atualização da pessoa sob medida de segurança para o juiz que a determinou. Para confeccionar esses documentos, os técnicos do Paili consultam a família e o Caps responsável pelo paciente.

Além dos Caps, as residências terapêuticas são utilizadas para quando a família não dá suporte ao paciente. O problema é a falta desses espaços.

"Temos usuários com uma dificuldade enorme de fazer uma adesão de novo à família, ao território, pois ficou internado ou preso por muito tempo, e a gente precisaria de [mais] residências terapêuticas para isso", afirma Nathália dos Santos Silva, gerente de saúde mental da Secretaria Estadual da Saúde.

Ela diz que também é importante aumentar a quantidade de Caps com atendimento noturno ou 24h para atender pacientes em casos de crise. O porém é que esse tipo de centro só é indicado para cidades com mais de 150 mil habitantes —Silva afirma que a maioria dos municípios no estado tem menos de 15 mil.

Outra melhoria necessária é a disponibilização de leitos para saúde mental em hospitais gerais. Atualmente, em Goiás, só há leitos cofinanciados em hospitais psiquiátricos conveniados ao SUS, mas a ideia seria tê-los em hospitais gerais para aprimorar o atendimento a esses pacientes.

Por outro lado, existem críticas ao fechamento total de manicômios judiciais.

Entidades médicas, como o CFM (Conselho Federal de Medicina) e a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), escreveram uma carta em que criticam a decisão do CNJ e apontam que a retirada das pessoas sob medida de segurança dos hospitais de custódia representam um perigo para a segurança pública do país. Outra crítica feita é que o sistema de saúde pública não estaria preparado para a mudança.

No Paili, sabe-se que podem ocorrer intercorrências durante o tratamento. Sempre que acontece uma, como um novo delito cometido pelo paciente ou uma viagem sem comunicar, as técnicas informam o juiz responsável pelo processo. Mesmo assim, os casos são poucos. O índice de reincidência entre participantes do programa é em torno de 5%.

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