Laboratórios de Brasil e Argentina desafiam Pfizer e Moderna para produzir vacina de RNA mensageiro

Farmacêuticas obrigam cientistas sul-americanos a buscar rotas tecnológicas livres de proteção

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Diego Junqueira Silvina Heguy
Repórter Brasil

Laboratórios da América do Sul estão desafiando as farmacêuticas Pfizer e Moderna na corrida pela vacina de RNA mensageiro (mRNA) contra a Covid-19. Brasil e Argentina lideram os esforços para formar um polo regional de produção independente, com apoio da OMS (Organização Mundial da Saúde). Mas a disputa por patentes da tecnologia, travada pelas empresas dos Estados Unidos, ameaça o projeto.

As vacinas de mRNA utilizam uma parte do código genético do vírus para levar às células uma "receita" que ensina o sistema imunológico a produzir anticorpos contra a infecção. Essa tecnologia é distinta da adotada pelas vacinas tradicionais, que usam o vírus inteiro inativado (como o imunizante da gripe) ou atenuado (como os de sarampo e pólio) para despertar a reação do corpo.

A principal pesquisa sul-americana é encabeçada por Bio-Manguinhos, laboratório da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), ligado ao Ministério da Saúde. Cientistas já vinham desenvolvendo uma vacina própria de RNA antes da pandemia, com foco no tratamento do câncer. O projeto foi redesenhado para a Covid-19, mas os inúmeros pedidos de patente apresentados por Pfizer e Moderna dificultam o desenvolvimento.

Área produtiva da fábrica de vacinas da Fiocruz, com dois técnicos vestidos com macacões cobrindo inclusive a cabeça
Área produtiva da fábrica de vacinas da Fiocruz. Primeiros lotes da vacina brasileira de RNA mensageiro para testes clínicos devem ser fabricados ainda em 2023 - Bernardo Portella/Bio-Manguinhos

A patente é um título que protege a propriedade intelectual de uma invenção, garantindo ao inventor a exclusividade de produzir e vender um produto em determinado país, geralmente por 15 ou 20 anos. Porém, antes mesmo de uma patente ser concedida, a simples apresentação do pedido já afasta outros desenvolvedores em razão de possíveis riscos econômicos.

No segmento farmacêutico, também é possível patentear técnicas e moléculas necessárias à fabricação de um remédio ou vacina.

Com a vacina de mRNA para Covid não é diferente. A Moderna já apresentou 21 solicitações de patentes no mundo todo, sendo 13 só na América Latina, segundo informou Bio-Manguinhos à Repórter Brasil. Destas, uma já foi concedida no Brasil e outras nove estão em análise no país.

Já a Pfizer solicitou 13 patentes no Brasil, de acordo com o laboratório da Fiocruz. Uma já foi concedida, outra foi recusada e as 11 restantes estão em análise no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual.

Esse elevado número de pedidos de patentes é visto por alguns especialistas como forma de impedir a entrada de novos produtores no mercado. É o que afirma a pesquisadora peruana Ximena Benavides, da Universidade de Yale. Ela faz parte de um grupo de investigação sobre a iniciativa da OMS para difundir a tecnologia globalmente.

"É uma estratégia muito clara para bloquear o hub", diz Benavides em entrevista a Repórter Brasil, Perfil e Red Palta (Rede Latino-Americana de Jornalistas por Transparência e Anticorrupção).

O desafio dos cientistas sul-americanos não é propriamente o de quebrar as patentes, mas sim de driblá-las. Ou seja, trata-se de encontrar substâncias e técnicas análogas às usadas pelas gigantes farmacêuticas dos Estados Unidos, mas ainda não patenteadas.

Um caso ilustra como as patentes da Pfizer e da Moderna dificultam a pesquisa da Fiocruz. Essas vacinas adotam em sua fórmula vários tipos de lipídios que permitem ao RNA mensageiro alcançar as células sem sofrer desintegração.

Pfizer e Moderna, contudo, apresentaram patentes para alguns dos lipídios usados. Até mesmo a proporção de cada lipídio na formulação é alvo de patentes. Isso levou Bio-Manguinhos a buscar partículas equivalentes para aplicar na vacina brasileira.

"Nós ficamos paralisados durante pelo menos seis meses porque a gente não encontrava um local que pudesse produzir esses lipídios com boas práticas de fabricação para nossos estudos clínicos e livres para utilização", explicou Patrícia Neves, pesquisadora de Bio-Manguinhos/Fiocruz, durante webinário realizado em agosto sobre o projeto.

O pesquisador Jorge Bermudez, da Escola Nacional de Saúde Pública, também ligada à Fiocruz, explica que as vacinas de Covid revelaram um cenário ainda mais complexo em relação à propriedade intelectual. Para um mesmo produto, além das patentes das próprias empresas, há uma série de nanopartículas patenteadas e materiais utilizados na vacina que não pertencem à empresa fabricante.

"A Pfizer não é detentora de todas as patentes de sua vacina. É uma rede de patentes que permite à Pfizer fabricar a vacina", afirma.

Para o vice-diretor de Inovação de Bio-Manguinhos, Sotiris Misailidis, que coordena o desenvolvimento do imunizante nacional, "essas barreiras patentárias são comuns no desenvolvimento de vacinas e biofármacos", mas o caso da vacina de mRNA é "especial" em razão do número de patentes submetidas. "Todas as empresas tentam fechar uma parte [da tecnologia] para garantir que possam avançar, mas também para bloquear o avanço dos outros", avalia.

Procurada, a Pfizer declarou que não registra patentes "com o objetivo de limitar a competição" e que suas solicitações refletem uma "inovação genuína". A Moderna não respondeu.

‘Vacina do futuro’

Técnico trabalha no laboratório argentino Sinergium
O laboratório argentino Sinergium iniciou desde o zero o desenvolvimento de sua vacina de mRNA - Opas

As vacinas de RNA mensageiro são consideradas um marco na história da ciência, em razão de sua elevada eficácia e da facilidade para serem adaptadas às variantes do coronavírus —incluindo versões mais próximas da EG.5, monitorada por autoridades de saúde e que já circula no Brasil.

Essas vacinas dominaram o mercado da Covid-19 e se tornaram preferenciais em países como Brasil, Argentina, Chile e Peru, segundo levantamento da Red Palta. Mas as versões atualizadas dos imunizantes, como as bivalentes, que passaram a ser comercializadas há cerca de um ano, chegaram a poucas nações até o momento.

Dos 51 países e territórios das Américas, apenas 6 adquiriram as doses bivalentes da Pfizer que protegem contra a cepa original e as variantes ômicron BA.4/BA.5, e somente um recebeu as da Moderna, segundo levantamento da Opas.

Para difundir a tecnologia de mRNA, a OMS lançou em 2021 um modelo de transferência de tecnologia entre laboratórios de países emergentes.

Pfizer e Moderna não aceitaram participar da empreitada.

Consultada, a Pfizer confirmou que não está envolvida no "hub" da OMS, mas afirmou "saudar com satisfação as iniciativas voluntárias" para promover o acesso equitativo às vacinas e terapias contra a Covid. A Moderna não fez declarações.

A Pfizer afirmou ainda que se comprometeu com o acesso equitativo à sua vacina desde o início da pandemia e que apoia programas de fornecimento e doação de vacinas, como a Covax. A empresa destacou que já entregou 1,8 bilhão de doses para 112 países de baixa e média renda, de um total de 4,6 bilhões de doses entregues no total.

A África do Sul lidera a iniciativa da OMS, por meio do laboratório Afrigen. O "hub" já conta com laboratórios de 15 países, incluindo Brasil e Argentina.

A Fiocruz foi escolhida para criar uma vacina livre de royalties e cuja tecnologia seja compartilhada a outros produtores regionais. O plano conta com a participação do laboratório argentino Sinergium, que começou o desenvolvimento "do zero", segundo disse em nota.

Os projetos sul-africano e brasileiro estão mais avançados. A Afrigen já produziu os primeiros lotes da vacina, que é baseada na fórmula da Moderna.

Imagem fechada em duas mãos puxando vacina de dentro de um vidro com uma seringa
A sul-africana Afrigen foi a primeira a produzir a vacina de mRNA por meio do programa da OMS (Organização Mundial da Saúde) - OMS

Já a vacina brasileira está atualmente em fase de estudos pré-clínicos e em breve serão realizados os testes em hamsters e exames toxicológicos. Se a vacina superar essas fases, os testes em humanos devem começar no início de 2024. A fabricação dos primeiros lotes da vacina nacional para os testes clínicos está prevista para ocorrer ainda em 2023.

A falta de compartilhamento entre os projetos levanta dúvidas se haverá uma real transferência de tecnologia, observa Benavides, de Yale. "Não está claro se o projeto de transferência de tecnologia será bem-sucedido, uma vez que foi modificado mais de uma vez, redirecionando seus esforços à medida que a pandemia se desenvolvia."

Os especialistas dizem que dominar essa tecnologia é fundamental para o enfrentamento de diversas outras doenças, como para o tratamento do câncer. "Ela vai trazer vários novos produtos ao mercado, que até agora não tem sido possível com as tecnologias disponíveis", diz Misailidis, de Bio-Manguinhos.

"É importante dominar a produção porque nos oferece vantagens em termos de preparação para epidemias ou pandemias e capacidade de atualizar rapidamente vacinas como da própria Covid e da influenza", diz.

Além disso, ele ressalta que uma vacina brasileira poderá custar até 10 vezes menos do que os preços praticados por Pfizer e Moderna.

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