A corrida das vacinas está longe de acabar. Cerca de 54% do mundo já foi imunizado com a primeira leva, mas a expansão da segunda geração está a todo vapor. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), há 326 vacinas em desenvolvimento, das quais 132 na fase de testes clínicos.
A boa notícia não esconde um problema ético. O uso de placebo continua regra entre parte dos desenvolvedores, o que conflita com um princípio da Declaração de Helsinque, que trata das pesquisas com seres humanos.
Normalmente esses estudos exigem o recrutamento de voluntários sem imunidade contra a Covid-19, o que significa não ter sido vacinado nem infectado. No contexto atual da pandemia, quando a doença continua sem tratamento mas já há vacinas disponíveis, é uma questão polêmica manter esses voluntários por meses tomando placebo —e correndo riscos.
Dos imunizantes em testes clínicos monitorados pela OMS, 40 estão nas fases 2 ou 3, etapas em que se mede a eficácia do produto. Nesse grupo, 24 já informaram ter feito os testes com placebo, que são mais rápidos e baratos.
No Brasil, onde a vacinação completa beira os 160 milhões de pessoas, esses testes são conduzidos por laboratórios nacionais terceirizados por biofarmacêuticas estrangeiras.
Dirceu Greco, professor da Faculdade de Medicina da UFMG, diz que o modelo de pesquisa sem placebo tem desvantagens que desenvolvedores preferem não enfrentar.
Uma delas é a exigência de que os indivíduos do grupo de controle sejam imunizados com vacinas do mercado, o que joga para o desenvolvedor o custo de viabilizar a comparação com um produto já aprovado. Também impacta no orçamento a exigência de recrutar, em média, 2,5 vezes mais voluntários, para resolver distorções estatísticas.
Outro constrangimento em relação a vacina já posicionada no mercado é a regra de transparência, afirma Greco. "A empresa pensa: vou ter que publicar o estudo e pode ser que a vacina do outro laboratório seja melhor. Até nesse sentido, a utilização do placebo tem vantagem, porque, ao comparar com nada, certamente algum efeito superior a vacina terá."
Fora essas questões, que o pesquisador define como mercadológicas, não haveria mais justificativa para o uso de placebo na pandemia. "É sofista o argumento de que é complicado preparar um projeto porque não há no mercado disponibilidade de vacinas para serem o comparador.
Os contratos do SUS com os laboratórios deveriam facilitar o acesso às vacinas nessas situações, o produto não se perderia, alguém seria imunizado."
A situação traz de volta o mesmo debate da pandemia de HIV sobre a chamada exploração da vulnerabilidade, diz Marisa Palacios, professora e diretora do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ.
Palacios não vê diferenças entre expor ao vírus da Covid-19 a população de países sem vacinas e os estudos de transmissão de mãe para filho do HIV realizados em países da África nos anos 90.
"Isso não é dilema ético. No dilema, a gente não sabe o que é bom e o que não é." No atual, isso está claro, afirma a bioeticista. "É um problema ético."
No Brasil, pelo menos três dos nove estudos clínicos autorizados pela Anvisa usam placebo no grupo de controle: os das vacinas COVLP, da canadense Medicago; SCB-2019, da Clover, e inativada contra Sars-CoV-2 Célula Vero, do IMBCAMS, ambos chineses.
O registro público é que, nos três casos, já teriam sido recrutados 23,6 mil brasileiros em nove estados. À Folha, a Medicago afirmou que o recrutamento acabou em setembro e que, no momento em que o estudo foi planejado, o placebo era a "única opção realista possível". Em setembro, porém, a população brasileira acima de 18 anos estava elegível para a vacinação.
A farmacêutica disse ainda que os testes no continente estavam previstos desde o início. Em 26 de julho, seu perfil oficial no Facebook informava que, por causa da vacinação em curso no EUA, no Canadá e no Reino Unido, a empresa havia suspendido os testes nesses países e começado a recrutar na América Latina.
Além do menor custo, outro argumento usado em defesa do placebo é a necessidade de desenvolvimento rápido de novas vacinas. Essa é a base da Solidarity Trial Vaccines, iniciativa da OMS cujo propósito é desenvolver imunizantes em maior escala e de forma mais ágil.
O programa coordena testes de eficácia de vacinas no Mali, na Colômbia e nas Filipinas, parte delas com placebo.
Segundo a OMS, o STV adota o placebo nos países sem vacina disponível ou, quando direcionadas apenas à população prioritária, limita seu uso aos grupos não priorizados. Se houver imunizantes para todos, o comparador do grupo de controle é feito com vacina já autorizada.
Uso de placebo agora é violação ética, diz Covas
Em vez de acelerar, os testes com placebo atrasaram a produção de vacinas durante a pandemia, acredita Dimas Covas. No entender do diretor do Instituto Butantan, a gravidade da crise sanitária dispensava testes rigorosos de eficácia antes de dezembro de 2020. "Teria sido extremamente útil se tivéssemos vacina com 30% de eficácia então."
Covas, porém, é enfático ao afirmar que, quando há disponibilidade de imunizantes aprovados, o uso de placebo no grupo de controle é uma violação ética.
"Alternativas existem, a que propus e depois se consolidou foi o projeto de vacinação em massa em Serrana, uma tentativa de demonstrar a eficiência da vacina no meio da pandemia."
A Butanvac, imunizante de segunda geração em testes clínicos, mudou o modelo de pesquisa que começou a ser desenhado ano passado. Com o avanço da vacinação entre a população acima de 18 anos, o Butantan optou por usar a CoronaVac no grupo de controle.
"Primeiro, demonstramos a segurança, que é o básico. Segundo, comparamos a resposta imunológica", afirma Covas.
Nos estudos de comparação, são aprovadas novas vacinas que demonstram superioridade de proteção em relação às demais previamente disponíveis.
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