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Testes da 2ª geração de vacinas contra Covid-19 ainda usam placebo

Voluntários ficam meses sem imunização, o que é considerado antiético quando já existe produto aprovado para comparação

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A corrida das vacinas está longe de acabar. Cerca de 54% do mundo já foi imunizado com a primeira leva, mas a expansão da segunda geração está a todo vapor. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), há 326 vacinas em desenvolvimento, das quais 132 na fase de testes clínicos.

A boa notícia não esconde um problema ético. O uso de placebo continua regra entre parte dos desenvolvedores, o que conflita com um princípio da Declaração de Helsinque, que trata das pesquisas com seres humanos.

Mão com luva segura cinco pequenos frascos cm líquido transparente
Funcionárias trabalham na inspeção visual da linha de produção de doses da vacina Coronavac no Instituto Butantan - Eduardo Anizelli/Folhapress

Normalmente esses estudos exigem o recrutamento de voluntários sem imunidade contra a Covid-19, o que significa não ter sido vacinado nem infectado. No contexto atual da pandemia, quando a doença continua sem tratamento mas já há vacinas disponíveis, é uma questão polêmica manter esses voluntários por meses tomando placebo —e correndo riscos.

Dos imunizantes em testes clínicos monitorados pela OMS, 40 estão nas fases 2 ou 3, etapas em que se mede a eficácia do produto. Nesse grupo, 24 já informaram ter feito os testes com placebo, que são mais rápidos e baratos.

No Brasil, onde a vacinação completa beira os 160 milhões de pessoas, esses testes são conduzidos por laboratórios nacionais terceirizados por biofarmacêuticas estrangeiras.

Dirceu Greco, professor da Faculdade de Medicina da UFMG, diz que o modelo de pesquisa sem placebo tem desvantagens que desenvolvedores preferem não enfrentar.

Uma delas é a exigência de que os indivíduos do grupo de controle sejam imunizados com vacinas do mercado, o que joga para o desenvolvedor o custo de viabilizar a comparação com um produto já aprovado. Também impacta no orçamento a exigência de recrutar, em média, 2,5 vezes mais voluntários, para resolver distorções estatísticas.

Outro constrangimento em relação a vacina já posicionada no mercado é a regra de transparência, afirma Greco. "A empresa pensa: vou ter que publicar o estudo e pode ser que a vacina do outro laboratório seja melhor. Até nesse sentido, a utilização do placebo tem vantagem, porque, ao comparar com nada, certamente algum efeito superior a vacina terá."

Fora essas questões, que o pesquisador define como mercadológicas, não haveria mais justificativa para o uso de placebo na pandemia. "É sofista o argumento de que é complicado preparar um projeto porque não há no mercado disponibilidade de vacinas para serem o comparador.

Os contratos do SUS com os laboratórios deveriam facilitar o acesso às vacinas nessas situações, o produto não se perderia, alguém seria imunizado."

A situação traz de volta o mesmo debate da pandemia de HIV sobre a chamada exploração da vulnerabilidade, diz Marisa Palacios, professora e diretora do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ.

Palacios não vê diferenças entre expor ao vírus da Covid-19 a população de países sem vacinas e os estudos de transmissão de mãe para filho do HIV realizados em países da África nos anos 90.

"Isso não é dilema ético. No dilema, a gente não sabe o que é bom e o que não é." No atual, isso está claro, afirma a bioeticista. "É um problema ético."

No Brasil, pelo menos três dos nove estudos clínicos autorizados pela Anvisa usam placebo no grupo de controle: os das vacinas COVLP, da canadense Medicago; SCB-2019, da Clover, e inativada contra Sars-CoV-2 Célula Vero, do IMBCAMS, ambos chineses.

O registro público é que, nos três casos, já teriam sido recrutados 23,6 mil brasileiros em nove estados. À Folha, a Medicago afirmou que o recrutamento acabou em setembro e que, no momento em que o estudo foi planejado, o placebo era a "única opção realista possível". Em setembro, porém, a população brasileira acima de 18 anos estava elegível para a vacinação.

A farmacêutica disse ainda que os testes no continente estavam previstos desde o início. Em 26 de julho, seu perfil oficial no Facebook informava que, por causa da vacinação em curso no EUA, no Canadá e no Reino Unido, a empresa havia suspendido os testes nesses países e começado a recrutar na América Latina.

Além do menor custo, outro argumento usado em defesa do placebo é a necessidade de desenvolvimento rápido de novas vacinas. Essa é a base da Solidarity Trial Vaccines, iniciativa da OMS cujo propósito é desenvolver imunizantes em maior escala e de forma mais ágil.

O programa coordena testes de eficácia de vacinas no Mali, na Colômbia e nas Filipinas, parte delas com placebo.

Segundo a OMS, o STV adota o placebo nos países sem vacina disponível ou, quando direcionadas apenas à população prioritária, limita seu uso aos grupos não priorizados. Se houver imunizantes para todos, o comparador do grupo de controle é feito com vacina já autorizada.

Uso de placebo agora é violação ética, diz Covas

Em vez de acelerar, os testes com placebo atrasaram a produção de vacinas durante a pandemia, acredita Dimas Covas. No entender do diretor do Instituto Butantan, a gravidade da crise sanitária dispensava testes rigorosos de eficácia antes de dezembro de 2020. "Teria sido extremamente útil se tivéssemos vacina com 30% de eficácia então."

Covas, porém, é enfático ao afirmar que, quando há disponibilidade de imunizantes aprovados, o uso de placebo no grupo de controle é uma violação ética.

"Alternativas existem, a que propus e depois se consolidou foi o projeto de vacinação em massa em Serrana, uma tentativa de demonstrar a eficiência da vacina no meio da pandemia."

A Butanvac, imunizante de segunda geração em testes clínicos, mudou o modelo de pesquisa que começou a ser desenhado ano passado. Com o avanço da vacinação entre a população acima de 18 anos, o Butantan optou por usar a CoronaVac no grupo de controle.

"Primeiro, demonstramos a segurança, que é o básico. Segundo, comparamos a resposta imunológica", afirma Covas.

Nos estudos de comparação, são aprovadas novas vacinas que demonstram superioridade de proteção em relação às demais previamente disponíveis.

Beatriz Vasconcelos , Camille Bropp , Laura Tissot e Marina Fonseca
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