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Pesquisadores apostam em miniórgãos de laboratório

Avanço de novas tecnologias pode vir a substituir animais e até humanos em testes de remédios

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Rio de Janeiro e Barra Mansa (RJ)

Tecnologias que emulam órgãos humanos devem provocar mudanças nas duas etapas eticamente mais complicadas das pesquisas de medicamentos, as chamadas fases pré-clínica (testes em animais) e clínica (testes em pessoas). Além da vantagem óbvia de poupar seres vivos de riscos, esses métodos podem gerar resultados mais próximos aos observados em humanos.

Uma das maiores dificuldades no desenvolvimento de novas drogas é que nem sempre o resultado de estudos conduzidos no modelo animal se confirma nos testes com pacientes.

O desfecho pode ser dramático: a droga fialuridina, para tratamento da hepatite B, que tinha passado na fase com bichos, foi descontinuada após causar a morte de cinco pacientes de um grupo de 15.

Na foto colorida, uma mão do lado direito do quadro segura, com o polegar e o indicador, uma pequena placa transparente. Esse objeto contém um chip com um fio azul e outro rosa. O fundo da imagem é cinza.
Exemplo de órgão-em-chip usado, por exemplo, em estudos de medicamentos - Divulgação/Emulate

Depois disso, a empresa americana de biotecnologia Emulate constatou o alto grau de toxicidade do remédio ao refazer os estudos usando os chamados órgãos-em-chips, espécie de chip de computador com microambiente adaptado para desenvolver células humanas.

A Emulate trabalha com a FDA (agência regulatória americana equivalente à Anvisa) em estudos de vacinas da Covid-19 e do Alzheimer.

Jim Corbett, presidente da empresa, é um defensor de métodos alternativos para reduzir o uso de animais em pesquisas e torce pela aprovação da proposta de modernizar os critérios da FDA, apresentada este ano no Congresso americano.

Outra tecnologia que aponta na mesma direção é a de miniórgãos —organoides criados em laboratório a partir de células-tronco pluripotentes induzidas (iPS na sigla em inglês). Nesse processo, células adultas são induzidas a retroceder a um estágio embrionário e alimentadas com as mesmas proteínas que comandam a diversificação das células do embrião em diferentes órgãos do corpo humano.

"Essa é a beleza do desenvolvimento, as células têm uma espécie de programa interno e, ao receber os sinais certos, sabem o que fazer", diz Aitor Aguirre, professor de engenharia biomédica na Universidade
de Michigan.

O grupo de Aguirre desenvolveu um minicoração com complexidade equivalente à de um feto no primeiro trimestre. Com cerca de um milímetro, o organoide consegue formar as camadas da parede cardíaca, as câmaras e os vasos sanguíneos funcionais e chega a bater, possibilitando estudos de doenças cardíacas congênitas inviáveis em modelo animal.

Pesquisadores brasileiros também usaram organoides para demonstrar a relação causal entre o vírus da zika e a microcefalia. Como animais não são facilmente contaminados e desenvolvem quadros menos severos, os cientistas optaram por criar um minicérebro a partir das iPS; infectado com o vírus, ele ficou menor, tal como o cérebro das crianças.

"Os minicérebros revolucionaram a neurociência porque recapitulam um cérebro humano nos primeiros estágios do desenvolvimento embrionário", diz Patrícia Garcez, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ. O estudo é feito em parceria com o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino.

"É muito bonito ver o processo acontecendo in vitro, porque é um material raro e pouco acessível."

Na foto microscópica com fundo preto, vê-se ao centro da imagem um minicérebro, produzido em laboratório. Ele é uma pequena estrutura ovóide de cor creme, e possui dois pequenos pontos pretos do lado esquerdo, um em cima do outro
Minicérebro produzido em laboratório com estrutura rudimentar de olhos sensíveis à luz - Elke Gabriel/Stem Cell

Os miniórgãos também podem ser tridimensionais, produzidos em impressoras 3D com uma biotinta em gel criada a partir da fusão de células reprogramadas e uma matriz que simula proteínas de sustentação dos tecidos. Ao final, uma reação química garante consistência menos gelatinosa aos organoides.

A bioimpressão permite que os cientistas misturem células de diferentes tecidos e criem estruturas complexas, como vasos sanguíneos ou os minifígados cultivados no Centro de Estudos do Genoma Humano e Células Tronco da USP.

"Primeiro diferenciamos as células em vários tipos porque, em geral, um tecido não é formado por um tipo só. Depois misturamos e aplicamos a bioimpressão 3D", explica o professor e pesquisador Ernesto Goulart.

Na UFRJ, a professora Leandra Baptista se associou ao Inmetro e hoje desenvolve um tecido pulmonar tridimensional para testes de infecção viral da Covid-19.

O tecido ainda não produz muco nem se contrai como na respiração, mas a reprodução de certas características funcionais do pulmão, como estrutura e composição celular do tecido, propicia respostas mais relevantes, diz Baptista, que é também fundadora da startup de bioengenharia tecidual Gcell.

Os produtos têm o uso regulamentado pela Anvisa na área de medicina regenerativa para recuperação das funções normais de órgãos e células. O grupo também está concluindo estudos de formação de osso a partir de células-tronco de tecido adiposo, para cobrir áreas de crânios com defeito crítico.

Para Leandra Baptista, a bioengenharia tecidual pode ajudar a abolir o uso de animais em testes, como ocorreu na indústria cosmética. Desde o surgimento das peles reconstruídas em laboratório, o modelo foi abandonado pela maioria das grandes empresas do setor.

Mas nem sempre as trocas são possíveis, afirma Patrícia Garcez, também da UFRJ, cujo grupo tenta descobrir os fatores que aumentam a possibilidade de transmissão do vírus da zika da grávida para o feto. "Um estudo como esse só é viável em organismos completos, por isso o modelo animal tem sua vez", afirma a cientista.

As restrições empurram a erradicação de testes em humanos ou em animais para um futuro cuja chegada ainda é difícil de estimar —mas já está no horizonte.

Joana d’Avila , Luany Galdeano , Beatriz Vasconcelos e Acácio Moraes
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