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Pesquisa revela estudos para 'curar' gays no Brasil dos anos 1930-40

Tratamentos incluíam transplante de testículos de macacos, eletrochoque e até romances

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Marcelo Lima Loreto Isabela Lobato Suzana Petropouleas
Nova York, Belo Horizonte e São Paulo

Transplante de testículos de macacos, injeções de extratos testiculares, eletrochoque, massagens na tireóide, ginástica respiratória, tratamento da constipação intestinal, psicanálise, mudança de ambiente e até leituras de romances de paixões heterossexuais.

O compêndio para "prevenir" e "curar" a homossexualidade nas décadas de 1930/1940 era vasto e atirava para todo lado, segundo a tese de doutorado de autoria do historiador Rodrigo Ramos Lima, recém-aprovada na Fundação Oswaldo Cruz.

Foto de manifestação; a frente, uma bandeira LGBTQIA+
Protesto em SP contra decisão de juíza que autorizava psicólogos a tratarem homossexualidade como doença em 2017 - Marlene Bergamo/Folhapress

Além do preconceito, os tratamentos refletiam as angústias da época, segundo o historiador. O mundo registrava então uma queda demográfica de dezenas de milhões de pessoas, vítimas da Primeira Guerra Mundial e da Gripe Espanhola, e novos estudos e terapêuticas enfatizavam a importância da reprodução humana.

Somados ao contexto desenvolvimentista da Era Vargas (1930-1946) e a correntes conservadoras como o integralismo, ideais de virilidade masculina, capacidade reprodutiva e heterossexualidade sustentavam estudos que viam gays, lésbicas, homens impotentes e crianças com problemas neurológicos como corpos a serem corrigidos ou descartados. "Era a época da seleção eugênica, dos corpos fortes e viris", diz Lima.

O experimento mais chocante relatado foi o conduzido pelo legista e professor universitário Leonídio Ribeiro (1893-1976), fundador e dirigente do Laboratório de Antropologia Criminal, vinculado à Polícia Civil do Rio.

A instituição policial era conhecida à época por promover a repressão a grupos como homossexuais, negros, sambistas e religiões afrobrasileiras.

Leonídio, por sua vez, era figura relevante no cenário médico e social da então capital federal, com dezenas de artigos e livros de medicina legal publicados e palestras no exterior. Na Itália, chegou a ser recebido por Mussolini em 1935 e elogiou os feitos do fascismo naquele país.

Uma pesquisa do historiador Alcidesio de Oliveira Júnior afirma que Leonídio também trabalhou com Filinto Muller, chefe da polícia política de Getúlio Vargas, na atualização das técnicas científicas de identificação e tratamento dos "criminosos patológicos" no Brasil.

O objetivo das pesquisas era provar a origem hormonal da homossexualidade. Como legista da Polícia Civil, Leonídio tinha acesso aos presos e usou no estudo pelo menos 195 gays detidos nas ruas sob acusação de atentado ao pudor, vadiagem e prostituição. As fotos integram o livro "Homossexualismo e Endocrinologia" (Rio de Janeiro, ed. Francisco Alves, 1938).

Foto do livro "Homossexualismo e Endocrinologia" (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1938) feitas pelo médico Leonídio Ribeiro, legista da Polícia Civil do Rio
Foto do livro "Homossexualismo e Endocrinologia" (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1938) feitas pelo médico Leonídio Ribeiro, legista da Polícia Civil do Rio - Reprodução

Embora não fosse tipificada como crime no Brasil, a homossexualidade era considerada uma doença, status que perdurou até 1990, quando a Organização Mundial de Saúde a retirou da lista internacional de patologias. No manual da Associação Americana de Psiquiatria, ela já tinha deixado de ser classificada como transtorno mental em 1973.

Os homossexuais eram fotografados nus, normalmente em duplas ou trios, e distribuídos em categorias de "ativos" e "passivos"; os últimos eram objetos de estudos mais aprofundados. Leonídio registrava características tidas como femininas e que estariam presentes em homens gays, como poucos pelos pelo corpo, púbis em forma de V e distribuição da gordura corporal.

Inspirado nas cirurgias que implantavam tecidos de uma espécie em outra (os chamados xenotransplantes), feitas pelo médico francês de origem russa Serge Samuel Voronoff (1866-1951), o legista recomendava enxerto e transplantes de testículos de macacos que conteriam hormônios sexuais capazes de reverter a homossexualidade e poderiam despertar "o desejo sexual e a vontade de casar".

O Laboratório de Antropologia Criminal encerrou suas atividades em 1946, no fim do governo Vargas, mas recomendações para tratamento de homossexuais semelhantes eram feitas também em clínicas particulares do Rio.

Hernani de Irajá (1894-1969), considerado pai da sexologia no Brasil, reportou em seu livro "Tratamento dos Males Sexuais" (Rio de Janeiro, ed. Freitas Bastos, 1933) o uso de um arsenal terapêutico que ia de eletrochoque a injeções de extratos testiculares e leituras de romances de paixões heterossexuais.

Dos 93 casos que dizia ter tratado, Irajá afirmava ter curado 12 —o desempenho era modesto, mas o médico se dizia confiante porque um colega teria obtido a "conversão" de uma lésbica com tratamento similar.

Rodrigo Lima conta na tese que, na segunda edição do mesmo livro (1937), Irajá descreve ainda a prescrição de fármacos contendo hormônios sexuais para o tratamento de gays, embora registre novamente que "os desejos homossexuais permaneciam na maioria dos pacientes".

Um dos medicamentos descritos era o Pansexol, criado pelo renomado psiquiatra Antônio Austregésilo a partir de extratos de testículos de touro e a planta ioimbina.

Vendido originalmente para tratar de problemas como impotência sexual e esgotamento nervoso, o Pansexol era indicado também para incrementar a virilidade dos gays.

Lima também revela relatos de uso de injeções de espermatozóides para esterilizar mulheres brasileiras durante a década de 30.

As experiências eram conduzidas por Manuel Gonçalves Loforte (1908-1987), professor da Faculdade de Medicina de Porto Alegre (hoje UFRGS), com base em estudos semelhantes realizados com mulheres argentinas.

Loforte defendia que portadoras de tuberculose, sífilis e lepra fossem esterilizadas pois seriam "seres inaptos para a reprodução ou que conceberiam seres indesejáveis à sociedade". O médico relatava ter submetido 28 pacientes a injeções de esperma, que eram seguidas de "reação local intensa, pouco dolorosa", febre, dor de cabeça e mal-estar geral.

No artigo em que narrou a experiência, Loforte considerou os resultados ótimos e dizia que experiências semelhantes eram feitas em São Paulo, mas empregando sêmen de carneiros.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o Tribunal de Nuremberg encarregou-se de investigar os crimes da guerra e, em 1946, condenou 16 médicos nazistas alemães por práticas antiéticas e eugênicas, como as que tornaram famoso o médico Josef Mengele, conhecido por suas experiências com os prisioneiros no campos de concentração de Auschwitz, na Polônia.

A mudança na prática médica e científica foi gradual, afirma o professor de medicina da UFMG José Agostinho Lopes. Várias das diretrizes internacionais atuais para ética e respeito aos direitos humanos foram concebidas após o final da década de 1940.

Na teoria, já não eram mais aceitáveis pesquisas sem o consentimento informado dos participantes, por exemplo, ou que se testassem em humanos possíveis tratamentos que traziam prejuízos já conhecidos antes do estudo.

Na prática, a pandemia de Covid-19 mostrou décadas depois que não é bem assim.

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