Descrição de chapéu Copa do Mundo

Sede da Copa encarna espírito russo cem anos após massacre de czar

Iekaterinburgo, divisa de Europa e Ásia, tem igreja em homenagem aos Románov

Iekaterinburgo e São Paulo

Sede da Copa do Mundo encravada logo após a divisa da Europa com a Ásia, Iekaterinburgo encarna como poucas cidades as convulsões da história russa.

Não são muitos os locais em que uma igreja foi levantada sobre o local do massacre de um imperador tornado santo. E que, para chegar lá, é possível cruzar com estátuas de seus algozes.

Assim é Iekaterinburgo, palco da execução da família real russa, evento cujo centenário será lembrado com grande procissão em 17 de julho, dois dias após o fim do Mundial.

O cortejo terá como ponto focal a Igreja sobre o Sangue em Honra a Todos os Santos Resplandecentes na Terra Russa, aberta em 2003.

Ela foi construída no endereço em que o último czar, Nicolau 2º, foi brutalmente morto a tiros e golpes de baioneta com a mulher, o herdeiro do trono, quatro filhas, o médico, três criados e dois cães.

Quem quiser visitá-la vindo pela central avenida Lênin quase sempre passará pela estátua do fundador da União Soviética, de pé mais de 26 anos depois do fim do império comunista.

Vladimir Lênin (1870-1924) tentava formar um governo em plena guerra civil. Ele mantinha a família real, cujo líder fora forçado a abdicar em fevereiro de 1917, detida a 1.400 km de Moscou. A aproximação do monarquista Exército Branco selou o destino do último imperador da dinastia Románov, surgida em 1613.

Não há registro escrito da ordem de execução, apenas telegramas posteriores confirmando que Moscou sabia o que ocorria nos montes Urais.

Em seus diários, o líder bolchevique Leon Trótski (1879-1940) descreveu diálogo com o implacável braço direito de Lênin, Iacov Sverdlov, que relatou a morte do czar como algo "que decidimos aqui".

"Ilitch [Lênin] acreditava que não deveríamos deixar nenhum estandarte vivo para os Brancos", disse Sverdlov, morto em 1919, aos 33 anos.

Sobre suas ordens há evidências mais concretas, como preparativos. Significativamente, em 1924 a cidade ganhou seu nome: Sverdlovsk.

Só voltou a ser Iekaterinburgo em 1991, com o ocaso soviético, mas a região em que se encontra ainda é chamada assim. A política russa tem o DNA dos Románov. Todo chefe de Estado bem-sucedido após o império emula traços de liderança czaristas.

Foi assim com o ditador Josef Stálin (1878-1953), é assim com o presidente Vladimir Putin, 65, no poder desde 1999.

E Putin reforçou laços com a Igreja Ortodoxa Russa, que voltou a ter protagonismo público. "Igreja e Estado sempre foram interligados. Quem nos acusa de proteger Putin não entende isso, temos muito mais liberdade religiosa hoje", disse à Folha o porta-voz da igreja, Vladimir Legoida.

Em 1981, uma dissidência da instituição nos EUA declarou os mortos de 1918 santos por martírio, algo não reconhecido em Moscou. Apenas em 1991 houve uma exumação de restos mortais dos corpos derretidos em ácido e enterrados numa floresta.

Sete anos depois, ocorreu enterro imperial em São Petersburgo. Só que faltavam os corpos do príncipe herdeiro Alexei e de sua irmã Anastasia.

Com isso e querendo tirar legitimidade do presidente Boris Ielstin (1931-2007), que era líder partidário em Iekaterinburgo quando a casa do massacre foi demolida em 1977, o patriarca moscovita não compareceu.

Em 2007, outras duas ossadas foram encontradas, e, no ano seguinte, testes comprovaram ser deles. A igreja ainda estuda o caso.

Alexei, morto com quase 14 anos, é personagem à parte no drama. Hemofílico com graves complicações, sua melhora nas mãos de Grigori Rasputin (1869-1916) deu ao obscuro monge papel central na corte.

Como relata o historiador britânico Simon Sebag Montefiore, Nicolau 2º era um governante incapaz, mas um pai dedicado. Quando abdicou, passou o trono a um irmão para proteger o filho.

Não funcionou, e a monarquia acabou, mas sua imagem carregando o garoto no colo para o porão da execução inspira a escultura em sua homenagem na frente da Igreja sobre o Sangue. A mais pungente recordação no de resto simplório museu da família real, ao lado da igreja, é um desenho de um guarda de seu cativeiro feito por Alexei.

Em 2000, o patriarcado de Moscou retomou o controle da narrativa. Ignorando a canonização americana, promoveu a sua própria.

Nela, em vez de mártires (alguém que morre por sua fé), os Románov são portadores da Paixão --aceitaram o destino com a resignação de Cristo. Também foram canonizados os criados, exceto dois que não eram ortodoxos, e outros Románov mortos.

Hoje, o porão é uma capela abaixo do altar da igreja, onde fiéis oram constantemente.

Apesar da devoção, os russos não querem a volta da monarquia e 52% acham que o fim dela foi algo bom, de acordo com uma pesquisa do Centro Levada de 2017.

Pode ser resquício da doutrinação soviética, ou apenas o fato de estarmos no século 21, mas a influência dos Románov segue atualíssima.

A trajetória da família real russa

Pioneiro
Em 1613, Mikhail 1º encerra uma crise sucessória e vira o primeiro czar Románov

Expansão
Pedro, o Grande, criou o Império Russo em 1721, que começou a expandir-se no Cáucaso contra a Pérsia

Ocidente
Catarina, a Grande, sobe ao trono em 1762. Expandiu muito o império, chegando ao Alasca, e o sofisticou com cultura e tecnologias ocidentais

Adversário
Nicolau 1º assume em 1825. Ele iniciou a disputa com o Reino Unido, o chamado Grande Jogo

Inflexão
Derrota na Guerra da Crimeia (1853) levou a uma mudança modernizante do governo do império

Crises sucessivas
O czar Nicolau 2º teve problemas, como a guerra russo-japonesa de 1905, revolução no mesmo ano e a Primeira Guerra Mundial, em 1914

Fim da linha
Impopular, Nicolau abdica forçado pela revolução de fevereiro de 1917 e acaba detido com a família. Um ano depois, todos são executados pelos bolcheviques

Dissidência
Igreja Ortodoxa Russa no Exterior declara em 1981 a família santa por martírio

Localizados
Identificados, restos da família são enterrados em São Petersburgo em 1998, exceto por dois membros ainda em investigação

Canonização
Em 2000, a Igreja Ortodoxa Russa canoniza a família real

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