Descrição de chapéu Copa do Mundo

Bélgica cria nova língua oficial, se une na Copa e esquece disputas internas

Rival do Brasil nas quartas de final é um país pouco acostumado à ideia de nação

Letícia Fonseca-Sourander
Bruxelas

Nunca a Bélgica esteve tão unida. Neste pequeno país marcado pelas disputas internas torcer pelos Diabos Vermelhos --como é conhecida a seleção belga-- virou agora uma mania nacional.

Pouco acostumados à ideia de nação, por causa da rivalidade histórica entre as regiões de Flandres (norte) e Valônia (sul), que permeia os quase 200 anos do país, os torcedores estendem a bandeira nas fachadas e esperam passar pelo Brasil e chegar à semifinal.

A atual geração de jogadores, considerada a melhor da história do país, investe no espírito de coesão. Mas nem sempre foi assim. Anos atrás, jogadores da seleção faziam as refeições em mesas separadas. De um lado, os flamengos, do outro, os valões, cada falando em sua respectiva língua. Nesta Copa, para evitar polêmicas, a seleção adotou o inglês como idioma oficial.

Aliás, a preponderância linguística é uma das raízes da discórdia. O país nasceu no século 19 como Estado-tampão entre franceses e holandeses. No passado, a Valônia, no sul, era a parte rica, e a elite burguesa falava o francês. As minas de carvão e siderurgia da Valônia fizeram com que o Estado e a aristocracia (até mesmo em Flandres, no norte) optassem pelo francês. Nos anos 1960, a poderosa siderurgia do sul entrou em decadência e começou a ascensão social e econômica dos flamengos.

Hoje, a Bélgica tem três idiomas oficiais: o francês, o holandês e o alemão, falado em uma pequena comunidade germânica no leste do país.

Segundo a Organização Internacional para as Migrações, a capital Bruxelas é a segunda cidade mais cosmopolita do planeta --62% dos moradores nasceram em outro país: são 163 nacionalidades presentes. A própria seleção é um retrato desta diversidade, com quase todos os jogadores de famílias estrangeiras.

O atacante Eden Hazard, capitão da equipe, nasceu em La Louvière, no sul da Bélgica, mas parte de sua família paterna é marroquina. O zagueiro Vincent Kompany é natural de Bruxelas, com origem congolesa por parte do pai. Assim como o centroavante Romelu Lukaku, o artilheiro do time, que vem de Antuérpia e tem família belgo-congolesa.

A República Democrática do Congo, antigo Zaire, foi colônia belga por 75 anos, parte deste período sob reinado do cruel monarca Leopoldo 2º, que fez do país sua propriedade privada.

Os famosos chocolates belgas devem muito de sua fama ao cacau que era levado da colônia africana para Bruxelas. Mesmo sem produzir um único fruto de cacau, a Bélgica se tornou referência na produção de chocolates, a partir da segunda metade do século 19.

Outro orgulho nacional, ao lado das melhores batatas fritas do continente, são as cervejas. É possível saborear um tipo de cerveja a cada dia durante quatro anos sem repetir a receita. A maior fabricante mundial, a belgo-brasileira AB Inbev, tem sede no país.

A identidade belga não inspira grandes paixões. O sentimento de pertencimento está muito mais ligado às comunidades flamengas e francófonas. Para a advogada Axelle Van den Werve, uma belga com coração brasileiro que morou 43 anos em São Paulo e está de volta a Bruxelas, em primeiro lugar, o belga vai se sentir flamengo ou valão, mas em raras ocasiões, como nesta Copa, ele ultrapassa o casulo e ergue a bandeira belga, não pelo país, mas pela simbologia, pela memória de tempos com divergências políticas menos acirradas.

Apesar da falta de unidade, a Bélgica tem ícones inegáveis como o jovem repórter Tintim, personagem criado por Hergé, que inspirou a criação de outros heróis, transformando o país em um dos grandes centros produtores de história em quadrinhos.

Através dos séculos, o território que hoje é a Bélgica foi palco de inúmeros conflitos. O país foi ocupado pela Alemanha na Primeira (1914-1918) e na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Atualmente, Bruxelas é sede da União Europeia e da Otan, a aliança militar ocidental. O que em si é um paradoxo, já que o símbolo de união defendido pelas duas instituições é o oposto da eterna crise vivida pela Bélgica, sob ameaça constante de um processo de separação.

Os flamengos são mais organizados, rigorosos, estruturados, trabalhadores e com tendência à direita. Já os valões levam a fama de acomodados e preguiçosos, porém mais sociáveis e tolerantes.

De uma maneira geral, os belgas são considerados bons vivants, sobretudo no sul, que tem características mais latinas. Os clichês são inúmeros mas os indicadores econômicos mostram o dinamismo e a modernidade de Flandres em contraste com a economia estagnada da Valônia.

"Temos 14 anos de atraso em relação ao PIB dos flamengos", admite o governo valão.

O país hoje é um reflexo de duas comunidades cada vez mais divididas e uma capital autônoma, bilíngue, onde 85% dos moradores falam francês.

Os francófonos defendem as atuais fronteiras e uma cultura comum sem separações linguísticas. Já os flamengos, até por sua história de luta pelo reconhecimento de direitos, são separatistas. A maioria em Flandres apoia a ideia de uma confederação, com a Bélgica se transformando em uma associação de Estados soberanos. O cenário político belga é um verdadeiro tabuleiro de xadrez: são três regiões com seus respectivos governos e Parlamentos para cada grupo linguístico. No total, o país tem sete Parlamentos.

A Bélgica, que está entre as nações mais ricas do mundo, é uma monarquia constitucional. Há cinco anos, o rei Alberto 2º --respeitado por ser uma figura de integração nacional-- abdicou após 20 anos a favor do filho Philippe.

O governo federal é obrigatoriamente composto por uma aliança entre os partidos francófonos e flamengos. A extrema direita na Bélgica tem crescido depois dos atentados terroristas que deixaram dezenas de mortos e feridos e paralisaram o país em março de 2016. Os ataques no coração da Europa levantaram o debate sobre a presença maciça de muçulmanos no país. Em Bruxelas, 23% da população é de origem muçulmana.

Enfrentar o Brasil de Neymar é ao mesmo tempo um sonho e um pesadelo para o time belga. O técnico dos Diabos Vermelhos, o espanhol Roberto Martínez, admitiu que a seleção do Brasil é a melhor desta Copa e que o duelo de sexta-feira é "o tipo de jogo que sonhamos desde criança".

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