Descrição de chapéu The New York Times

Multicampeã do boxe cobra redes de TV por visibilidade e as acusa de sexismo

Dona de duas medalhas olímpicas, Claressa Shields quer ser como Serena Williams

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Juliet Macur
The New York Times

Antes de dar seu primeiro soco na luta contra Marie-Eve Dicaire, que lhe rendeu a unificação do título júnior dos médios na última sexta (5), a bicampeã olímpica de boxe Claressa Shields queria que os fãs do esporte soubessem que ela é uma ótima babá de crianças.

Shields, que se sente um pouco subvalorizada hoje em dia, disse que quer derrubar suas adversárias, é claro, mas insistiu que na verdade é "superboazinha". Como Mary Poppins, mas com um cruzado de direita matador, ela tem uma conexão mágica com crianças e é um ótimo exemplo para os jovens, segundo disse. Ela costuma tomar conta de suas sobrinhas e sobrinhos.

Ela troca fraldas. Lê histórias em voz alta. Organiza festas para assistir filmes ou guerras de água em seu quintal. Prepara macarrão com queijo para valer, com "macarrão de verdade, leite de amêndoas e queijo", o que demora mais de uma hora. E na hora de dormir ela é molenga, deixando as crianças ficarem enroladas em cobertores no sofá muito depois da hora marcada.

"Sou maternal por natureza", disse Shields, que fará 26 anos neste mês, em uma videochamada no mês passado de uma cozinha na Flórida, onde fazia ovos mexidos entre treinos no acampamento. "E gosto de me vestir bem e usar maquiagem, mas ninguém fala sobre isso."

Shields, que é invicta como profissional, é tão maternal que assumiu cuidar de todo o boxe feminino --e de si mesma, é claro. Ela quer que seu esporte floresça, e se incomoda porque a TV esqueceu as boxeadoras durante a pandemia, enquanto o boxe masculino sofreu muito menos.

Mulher negra com roupas vermelhas corre em celebração com uma bandeira dos Estados Unidos
A boxeadora americana Claressa Shields celebra a vitória da categoria peso médio nas Olimpíadas no Rio de Janeiro, em agosto de 2017 - Mauricio Lima/The New York Times

Ela ficou maluca porque foi obrigada a quase suplicar para as redes transmitirem sua última luta. Afinal, ela é a autoproclamada GWOAT [sigla de the "Greatest Woman of All Time" --a maior mulher de todos os tempos], com um currículo que torna a afirmação plausível. Quando as redes não morderam a isca, ela olhou com ainda mais carinho para as artes marciais mistas, MMA na sigla em inglês. As mulheres são tratadas muito melhor nesse esporte, segundo ela, que pretende estrear nele no próximo verão no hemisfério norte.

Shields e Marie-Eve Dicaire, a boxeadora com quem ela lutou (e que estava invicta até então) na sexta pelo campeonato dos pesos supermédios, estavam prontas para se enfrentar há um ano, mas nenhuma das redes aceitou transmitir o embate depois que a Showtime o adiou em março passado por causa da pandemia e não o remarcou.

Shields, que disse que receberia US$ 350 mil por aquela luta, levou para o lado pessoal o fato de as redes continuarem transmitindo as lutas masculinas, mas não a dela. Tinha contas para pagar, incluindo a hipoteca da casa de três quartos que comprou em sua cidade natal, Michigan, o que a tornou a primeira pessoa de sua família a possuir uma casa.

"Eles são sexistas e não conseguem lidar com mulheres fortes", disse ela sobre as redes de TV. "Estão sempre gritando igualdade, pagamento igual, oportunidades iguais, mas não falam sério. Porque tudo o que elas têm que fazer é dizer sim. Elas podem dizer: 'Sim, sabe de uma coisa? Vamos colocar o boxe feminino em todos os programas, de qualquer jeito'. Isso ajudaria o boxe feminino, mas elas não cumprem. Por isso estou cuidando da minha carreira por conta própria."

A luta entre Shields e Dicaire acabou sendo transmitida pela plataforma online Fite.tv, pelo valor de US$ 29,99 para o fã que quisesse assistir. A disputa, realizada no Centro Financeiro Dort, em Flint, foi a primeira com mulheres como atração principal de evento em pay-per-view desde que Laila Ali lutou com Jacqui Frazier-Lyde em 2001, quando mais de 100 mil fãs pagaram para ver o combate. A luta encabeça um programa exclusivamente feminino organizado próximo do Dia Internacional das Mulheres, nesta segunda-feira (8).

Em vez de receber uma taxa fixa de uma rede, esta luta pay-per-view ofereceu uma recompensa incerta para Shields e sua equipe, com seu promotor, Dmitriy Salita, assumindo 100% do risco financeiro. É uma aposta que eles decidiram aceitar porque estavam cansados de esperar que as redes oferecessem um espaço.

"As redes nos disseram que tinham muitos compromissos de lutas e não estavam preparadas para seguir adiante com uma de Claressa", disse seu empresário, Mark Taffet. "Não sei se é verdade, mas sei que não havia redes interessadas em transmitir as maiores boxeadoras femininas."

Os programadores de boxe na TV reagiram à acusação de sexismo.

Stpehen Espinoza, presidente da Showtime esportes, não quis comentar as afirmações de Shields, mas em um comunicado disse que a pandemia criou custos maiores para produzir eventos ao vivo e fez a rede cortar o número de lutas que podia produzir. Ele chamou Shields de "um tremendo talento, e é por isso que investimos forte nela há vários anos". A Showtime mostrou seis das dez lutas profissionais de Shields, e Espinoza disse que a rede espera trabalhar com ela no futuro.

Ken Hershman, ex-presidente da HBO Sports e ex-vice-presidente executivo da Showtime, disse que tem "altas dúvidas" de que o sexismo seja o problema, considerando que as redes destacaram as melhores mulheres no passado, incluindo Shields, Ali e Christy Martin.

"Acho que há muito tempo deixamos de questionar a capacidade de as mulheres serem emocionantes e experientes no ringue", disse ele.

Um motivo para a ausência de lutas femininas na TV pode ser a falta de concorrência nos níveis mais altos, disse Hershman. Afinal, Shields só foi a nocaute uma vez em sua carreira e, segundo a CompuBox, um programa de computador de classificação no boxe, acertou quase três vezes mais golpes que suas adversárias (1.432 a 512). Sem um grupo de lutadoras no mesmo nível, disse Hershman, seria difícil criar uma narrativa atraente para os espectadores que os leve a acompanhar uma rivalidade e os faça querer mais.

Shields fez sua parte para criar uma narrativa interessante, e a pandemia lhe deu tempo para pensar a respeito.

Tempo para pensar como ela chegou longe desde sua infância tumultuada em Flint, onde sua mãe lutava com a dependência de drogas e o pai cumpria uma longa pena de prisão. Tempo para pensar em superar obstáculos como o abuso sexual e a fome, para ser obrigada a continuar lutando por respeito depois de alcançar a camada superior do esporte.

Ela é a única lutadora americana, de ambos os sexos, duas vezes campeã olímpica. A boxeadora mais rápida da história se tornou a primeira campeã invicta em duas categorias de peso na era dos quatro cinturões.

"Sou uma superstar internacional, e estão fazendo um filme sobre mim", disse ela sobre a biografia "Flint Strong", filme escrito por Barry Jenkins, que escreveu e dirigiu "Moonlight", ganhador do Oscar de melhor filme em 2017. "Por isso não há motivo para que eu não transcenda os esportes, como faz Serena Williams."

A boxeadora Claressa Shields (R) contra Yenebier Guillen Benitez, da República Dominicana, na final da categoria 69 a 75 kg dos Jogos Panamericanos em Toronto, em 2015 - Xinhua/Zou Zheng

Shields disse que passa de uma a duas horas por noite deitada na cama pensando em como pode promover sua marca para se tornar ainda mais famosa.

Deveria postar mais no Instagram? Tuitar mais sobre suas lutas? Apelar a um leque maior de fãs em seu canal no YouTube? Ela já tem 382 mil "seguidores orgânicos no Instagram" --o suficiente, segundo diz, para fazer de seu evento pay-per-view uma aposta garantida para um patrocinador.

Em toda a sua carreira ela se esforçou para falar sobre as desigualdades no esporte, dizendo no mês passado que é "a voz das mulheres que têm medo de se manifestarem, porque mesmo em uma sala cheia de homens minha voz é ouvida". Seu ativismo começou cedo.

Depois de ganhar a primeira medalha de ouro olímpica aos 17 anos, em 2012, Shields perguntou à USA Boxing por que seu estipêndio mensal era de apenas US$ 1.000, enquanto alguns lutadores homens recebiam US$ 3.000. Seu cheque mensal aumentou para US$ 5.000 na Olimpíada seguinte, disse ela.

Shields insiste que as mulheres devem poder lutar rounds de 3 minutos em lutas de 12 assaltos, em vez do máximo atual de dez assaltos de 2 minutos. Assim, as mulheres podem ter uma base para receber pagamento igual por um trabalho igual.

"As regras atuais dizem que não podemos lutar 12 rounds de 3 minutos porque nos machucaremos fisicamente ", disse Shields. "Mas eu digo: vocês homens não estão nos protegendo. Estão nos degradando."

Ela vê as artes marciais mistas como muito mais igualitárias, o que é parte do motivo pelo qual ela está trazendo suas técnicas de combate ao esporte neste verão com a Liga de Lutadores Profissionais. Ela assinou contrato com a liga em dezembro.

Shields disse que há muito sonhava em ser campeã em dois esportes, e invejou como a MMA fazia um bom marketing das lutadoras. Ela gosta do fato de a MMA com frequência colocar mulheres nos programas com homens e conta histórias mais interessantes sobre seus lutadores --tornando-os mais atraentes para os fãs.

Holly Holm, ex-campeã da UFC que fez a transição do boxe para o MMA, atribui ao presidente da UFC Dana White o fato de o esporte ter se tornado muito mais convidativo para as mulheres do que o boxe.

White rapidamente percebeu quantos fãs as mulheres podem trazer para o esporte depois que contratou Ronda Rousey, a primeira lutadora da UFC, em 2012, e ela se tornou uma das maiores estrelas do esporte. Antes de se arriscar com Rousey, White tinha dito que as mulheres nunca lutariam na UFC.

"O boxe precisa de alguém como ele, disposto a arriscar o pescoço pelas mulheres e lhes dar a exposição de que precisam", disse Holm. "Veja Christy Martin; ela era a atração secundária para Mike Tyson e saiu na capa da Sports Illustrated. Laila Ali era filha de Muhammad Ali. Mulheres talentosas merecem ser vistas. Elas precisam de alguém que se esforce para isso acontecer."

E quando as mulheres tiverem visibilidade no boxe, disse Holm, os fãs pedirão mais e o esporte crescerá.

O sonho de Shields é que uma rede de esportes mostre o boxe feminino o tempo todo, para que os fãs, incluindo suas sobrinhas e sobrinhos, saibam onde sintonizar para ver uma boa luta de mulheres. No mínimo, o canal lhe daria mais uma atividade para suas noites de baby-sitter, disse ela rindo.

"Não estou pedindo igualdade só para mim, porque você sabe que eu tive uma carreira muito boa até agora", explicou. "Faço isso por todas as jovens que vêm aí. Quero que as pessoas pensem em mim um dia e digam: 'Claressa Shields foi muito maior que o boxe. Ela ajudou a mudar o mundo'."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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