Ex-lutador de MMA faz da drag queen Lola Pistola uma extensão de sua arte

Pintor e lutador de boxe sem luvas, Diego Garijo começou a se montar em 2019

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Los Angeles

Perucas coloridas, caixas de joias e latas de tinta espalhadas pelas mesas: não é exatamente um habitat típico de um lutador de MMA, mas Diego Garijo, 42, é também artista plástico e drag queen, conhecido fora dos ringues como Lola Pistola.

O americano nascido no México é também pai de três, casado há quase 20 anos, ainda que separado no momento, e professor de jiu-jítsu para crianças.

Afastado do MMA desde 2012, quando sofreu um descolamento de retina que o deixou tecnicamente cego, Garijo voltou a lutar em 2018 para disputar boxe sem luvas, um esporte então recém-legalizado nos EUA.

Diego Garijo montado como a drag queen Lola Pistola, em San Diego, na Califórnia
Diego Garijo montado como a drag queen Lola Pistola, em San Diego, na Califórnia - Apu Gomes - 1º.abr.21/AFP

Foram apenas duas lutas e contra o mesmo rival, que Garijo espera enfrentar novamente para o desempate e seu adeus definitivo dos ringues. Enquanto isso, ele pinta, apresenta-se como Lola e prepara uma minissérie sobre sua vida.

Garijo, que tem algumas de suas pinturas no Instagram (@diegogarijo), além de fotos como Lola, conversou com a Folha em seu estúdio em Los Angeles.

QUEM É DIEGO

Apenas me considero um artista. Desde criança, a primeira coisa que queria na vida era ser artista. Todas essas diferentes expressões do que faço são apenas formas de criatividade, até mesmo a luta. A maioria vê como competição, mas esporte é entretenimento. Se alguém me paga para entreter, vou fazer da forma mais criativa. Meu estilo não era tecnicamente o melhor para vencer, mas era emocionante. Meu treinador reclamava que eu arriscava demais, tinha zero defesa, era tudo ataque. Perdi poucas lutas, mas, quando perdi, não foi nada tedioso.

ADEUS AO MMA

Meu médico disse para eu não lutar mais, que poderia ficar cego do outro olho também. Fiz então o que era melhor para minha família e parei. Mas não estava pronto para desistir. Se fosse solteiro, sem filhos, provavelmente teria continuado. Sinto falta da emoção dos ringues, nada se compara. Existe aquela sensação de que você pode ser nocauteado, machucar-se seriamente. Gosto de gravitar nos extremos.

BOXE SEM LUVAS

Já tinha visto nos filmes, como "Snatch", com Brad Pitt, um dos meus filmes favoritos. E já tinha lutado um monte de vezes sem luvas quando era adolescente. Aliás, quando me aposentei, pesquisava empresas que faziam ilegalmente, enviava meu currículo e tal, mas nunca me responderam. Quando vi que ia legalizar, acreditei que era minha chance de sair da aposentadoria, fazer umas cinco ou seis lutas e me aposentar de novo.

RIVAL SORTUDO

A primeira luta sem luvas, contra Tom Shoaff, foi muito difícil. Ele estava me destruindo, mas então eu o nocauteei, como quase na maioria das minhas lutas. Todo o mundo achou que ele era melhor, e ele provavelmente é, então marcaram um rematch. Bem, tenho um osso aqui [apontando para dentro da boca] bem afiado, e Tom me deu um gancho bem aqui, e minha bochecha começou a sangrar por dentro, a encher de sangue. Acharam que tinha fraturado a mandíbula, e eu sabia que não. Mas pararam a luta. Tom estava ganhando, mas também estava ficando cansado, e eu estava a 100% ainda. Sorte a dele que o juiz interrompeu o combate.

ÚLTIMA LUTA

Desde que comecei a fazer drag, não tive mais nenhuma luta. Só planejo fazer mais uma e me aposentar. Estou com 42 anos, estou me sentindo mais velho, e Tom está no seu auge, está ótimo, é dez anos mais novo. Mas, você sabe, eu bato como um caminhão, então só preciso acertar uma. A demora em marcar é uma desculpa atrás da outra. Uma vez o promoter disse que não podia me pagar porque já estava pagando um monte de caras grandes do UFC. Depois me ofereceram US$ 6 mil [R$ 34,3 mil, na cotação atual], metade da luta de um ano atrás, uma das mais emocionantes que eles tiveram. Não topei. A grana tem que ser certa, já tenho uma lesão no olho muito séria.

Fazia um curso de inteligência emocional [em meados de 2019] para me conhecer um pouco melhor, e eles nos deram como tarefa fazer algo criativo, sair da zona de conforto. Até hoje não sei explicar, mas do nada eu disse: 'E se eu fizer um show de drag?'

Diego Garijo

sobre a criação de Lola Pistola

DESCOBERTA DRAG

Fazia um curso de inteligência emocional [em meados de 2019] para me conhecer um pouco melhor, e eles nos deram como tarefa fazer algo criativo, sair da zona de conforto. Até hoje não sei explicar, mas do nada eu disse: "E se eu fizer um show de drag?". As pessoas na aula tinham acabado de me conhecer, e eu tinha acabado de fazer uma luta, minha cara estava coberta de pontos, minha mão no gesso, e eles adoraram a ideia. Levei a sério 100%, como tudo o que faço na vida. Depilei o corpo todo, comprei as melhores perucas, furei as orelhas, escolhi a música.

WHITNEY E CELIA CRUZ

Queria fazer Whitney Houston porque a amo. Fui fazer compras com uma amiga da classe que é stylist. Queria um vestido para alguma música de Whitney, até cruzar com outro lindo e me apaixonar. Era bem tropical, e, como não tinha nada a ver com Whitney, acabei fazendo Celia Cruz [cantora cubana] e "La Vida es un Carnaval". Quando era criança, minha canção favorita era "Lambada - Chorando Se Foi" [do grupo brasileiro Kaoma]. Está na minha playlist para fazer no futuro, quero me vestir com uma roupa toda carnavalesca.

O artista plástico e lutador Diego Garijo sentado
O artista plástico e lutador Diego Garijo, conhecido no mundo das lutas como "Dos Pistolas" (duas armas, na tradução do espanhol) - Apu Gomes - 1º.abr.21/AFP

SEMELHANÇAS

O primeiro show, eu não sabia, era uma competição e acabei em segundo lugar. Aquilo me lembrou um pouco das lutas. Porque, quando você está no começo, luta em pequenos lugares, e depois as arenas ficam maiores quando sua carreira avança. Às vezes, você luta em lugares tão pequenos que se aquece do lado do seu rival e fica checando o tamanho do cara, se vai conseguir vencê-lo e tal. E, no show de drag, estávamos nós oito numa salinha espremida nos preparando para entrar. E todo o mundo foi muito legal, eu disse que era minha primeira vez, e disseram que eu estava ótima. A comunidade me trata muito bem, recebi muito apoio.

MACHISMO LATINO

Talvez por ser lutador, nunca ninguém disse nada negativo na minha cara. Porém dei uma entrevista para um site mexicano, e os comentários foram terríveis. Do tipo: "Jesus, venha nos salvar", "esse cara é insano e doente". Dei uma olhadinha nos comentários e deixei de lado. Prefiro focar o positivo. Nas matérias americanas, os comentários são muito mais positivos.

[...] Quando me vejo pronta, eu apenas me apaixono, não consigo parar de sorrir e me sinto como Lola, uma pessoa diferente, como se estivesse numa performance, atuando. Meus maneirismos e tudo o que faço apenas acentuam a feminilidade

Diego Garijo

sobre ser Lola Pistola

DIVA E BEBÊ QUEEN

Sou meio bebê queen ainda, estou fazendo isso faz alguns anos apenas e não sei como fazer maquiagem. Sou também diva e, se posso pagar, prefiro que alguém faça para mim. Não gosto de olhar a maquiagem até estar completa. Só então me olho no espelho. E, quando me vejo pronta, eu apenas me apaixono, não consigo parar de sorrir e me sinto como Lola, uma pessoa diferente, como se estivesse numa performance, atuando. Meus maneirismos e tudo o que faço apenas acentuam a feminilidade.

FEMININO x MASCULINO

As pessoas me veem bem masculino porque me veem lutando. Quem me conhece de perto sabe que posso ser bem feminino, é parte da minha personalidade. Acho que veio da minha infância. Fui criado por mãe solteira, sem aquela figura paterna dando aquele papo machista. E, sendo artista, eu me sinto mais emocional, mais criativo. Você tende a se expressar um pouco diferentemente dos outros. E, fazendo drag, posso explorar esse lado de maneira completa. Adoro cantar. Se eu soubesse cantar direito, faria isso em tempo integral.

ORIGEM DO NOME

Foi ideia da minha mulher. Era para ser o nome da nossa primeira filha, a gente amava Lola, mas, não lembro a razão, acabamos dando o nome Bella. E, quando estava procurando um nome drag, minha mulher se lembrou de Lola e de como poderia ser uma brincadeira com meu nome de lutador, que é Diego "Dos Pistolas" Garijo. Achei brilhante.

Sou casado faz quase 20 anos e temos três filhos [de 15, 13 e 10 anos]. Mas estamos separados no momento. Ainda somos melhores amigos e nos damos super bem, mas romanticamente não estamos mais juntos

Diego Garijo

sobre relação com a esposa

FAMÍLIA

Sou casado faz quase 20 anos e temos três filhos [de 15, 13 e 10 anos]. Mas estamos separados no momento. Ainda somos melhores amigos e nos damos super bem, mas romanticamente não estamos mais juntos. Ainda não nos divorciamos. Tenho uma namorada em Los Angeles e a amo muito. Fico em L.A. quatro dias da semana, faço meu trabalho aqui, e volto para San Diego para ficar com meus filhos. Ensino jiu-jítsu na escola deles, eles estão na classe, e isso é super divertido.

PASSADO TURBULENTO

Conheci minha mulher na escola. Depois fui expulso do colégio, ela foi para a faculdade. Ela nunca quis me namorar porque eu era encrenca, vivia entrando e saindo da prisão. Nada muito sério, pequenos delitos como vender drogas. Fui expulso de casa quando era menor de idade e tive que viver de roubar, como restaurantes e tal. Mas nunca machuquei ninguém.

MEXICANO EM SITUAÇÃO ILEGAL

Minha mãe me trouxe para os EUA quando eu tinha uns seis ou sete anos. Vim escondido na parte de trás de uma caminhonete, jogaram uns cobertores em mim, e, quando acordei, estava em Glendale [cidade no condado de Los Angeles]. Não tinha documentos, e essa é uma das razões por que eu não conseguia um bom emprego e acabava roubando para sobreviver. Quando fiz 19 anos, consegui meu green card e decidi mudar minha vida. Comecei a trabalhar, a me comportar melhor.

Diego Garijo treina jiu-jitsu em academia de San Diego, na Califórnia. Ele aplica golpe de imobilização em outro lutador, no tatame
Diego Garijo treina jiu-jítsu em academia de San Diego, na Califórnia - Apu Gomes - 1ºabr.21/AFP

JIU-JÍTSU

Jiu-jítsu mudou minha vida, eu amo. Foi onde comecei na luta, o que me deu confiança para me tornar um lutador. Costumava ser muito maltratado na escola, tive muitos problemas, e o jiu-jítsu me deu muita confiança para ser a pessoa que sou hoje, seja como drag, artista, pai, amigo.

Ser lutador definitivamente me ajuda a ser Lola. Tenho muita confiança. Mas sou privilegiado. Tenho um amigo que está há muito tempo na comunidade LGBTQ, e ele me diz que, quando se veste de mulher, às vezes corre perigo. Acho isso terrível. Pessoas nesses segmentos da população são mais propensas a ser atacadas

Diego Garijo

sobre saber se defender

PRIVILÉGIOS DE LOLA

Ser lutador definitivamente me ajuda a ser Lola. Tenho muita confiança. Mas sou privilegiado. Tenho um amigo que está há muito tempo na comunidade LGBTQ, e ele me diz que, quando se veste de mulher, às vezes corre perigo. Acho isso terrível. Pessoas nesses segmentos da população são mais propensas a ser atacadas. Elas deveriam saber como se defender, e o jiu-jítsu é uma ótima maneira de fazer isso. Minha filha se identifica como bissexual, e quero que ela se sinta segura. O jiu-jítsu teve um impacto tão positivo na minha vida que gostaria de divulgar mais no futuro, especialmente na comunidade LGBTQ.

HOLLYWOOD CHAMA

Tenho um parceiro para escrever, um empresário que trabalha para grandes atores, como o Marc Maron, e um advogado cujo cliente é o 50 Cent. Estamos fazendo uma minissérie sobre minha vida e falamos com algumas produtoras. O próximo passo é escrever o tratamento. Deverá ter animação, e pensei no nome "Contação de Histórias com Lola Pistola", e cada episódio começa com o personagem abrindo um livro e lendo para um bando de crianças.

PERUCAS X LUVAS

Hoje tenho pelo menos nove perucas. Luvas de luta? Só duas! Não as guardo como troféus. Guardo as perucas porque vou usá-las. Fiz muitas competições de jiu-jítsu e tenho em casa uma caixa cheia de medalhas. Não fico exibindo, quero olhar para a frente, para meus próximos objetivos. Aprender a andar de salto não veio de maneira natural, mas, por ser atleta, aprendi rapidamente. Melhoro a cada dia, e é muito doloroso.

BICOS

Quando comecei no MMA, abandonei a faculdade. E, quando tive que me aposentar pela primeira vez, não tinha diploma, educação, nenhuma habilidade além de bater nas pessoas. Fiz uns trabalhos temporários, fui encanador e virei servidor de processos [uma espécie de oficial de Justiça nos EUA], o que pode ser muito perigoso, e ganhei muito dinheiro. Fazia todos os casos que ninguém queria. Uma vez entreguei uma autuação ao Mick Fleetwood [do Fleetwood Mac] no palco e estraguei o show. Mas odiava esse trabalho, odiava minha vida, estava suicida, chorava dentro do carro todos os dias.

TRINTA DIAS DE COGUMELO

Pedi demissão e fui passar um tempo me conhecendo novamente, ver o que queria fazer da vida. Comecei a experimentar cogumelos, fiz umas jornadas espirituais e tomei cogumelos diariamente por um mês. No final, tinha mais alucinações do que no início do mês. E, no meio de uma viagem, lembrei que queria ser artista minha vida inteira. Uma luz acendeu, do nada, e comecei a pintar naquele dia. Em um ano, já vendia minhas pinturas por centenas de dólares. Hoje, sobrevivo como artista, não estou rico nem fazendo rios de dinheiro.

PINTURAS SOMBRIAS

Tem gente que não gosta das minhas pinturas. São bem sombrias. Perguntam se estou deprimido. Quem me conhece sabe que nunca estou triste, de mau humor. Acho que é por onde minhas emoções negativas saem, uma forma de expressá-las. É como abraçar sua sombra, meio como diz Carl Jung. Às vezes tentamos separar a pessoa que não queremos ser de quem somos, e isso nos torna pior. Você tem que aprender a aceitar sua escuridão.

SALTO DRAG NO TATAME

Definitivamente prefiro ver lutas. Não tem coisa melhor do que ver dois caras se acabando, dando a vida, competindo para valer. Não dá para comparar. Mas drag é também muito divertido. Fui com meu amigo ver um show alguns dias atrás e vi os artistas fazendo coisas diferentes, e isso me faz querer me esforçar mais. Vi uma drag dando um salto, e quero muito aprender. Vou praticar primeiro no tatame do jiu-jítsu para não me machucar.

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