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Frustração de Djokovic na Austrália pode ser ponto de inflexão na carreira

É possível ter chegado o momento de os reveses fora de quadra afetarem sua fome de vencer

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Christopher Clarey
Melbourne | The New York Times

Mesmo depois de ser expulso da Austrália, Novak Djokovic continuará a ser o primeiro colocado no ranking do tênis masculino, ao final do Australian Open, que começou nesta segunda-feira (17) sem a sua participação.

Ele ainda detém os títulos de Roland Garros e de Wimbledon. Continua a ter membros ágeis, técnica formidável no tênis e um longo histórico de durabilidade diante de torcidas hostis e de chances remotas de sucesso.

Mas em um esporte que parece dar mais importância aos títulos conquistados recentemente do que ao passado, e costuma ser categorizado por eras e pelos campeões que as definem, não seria surpresa se os acontecimentos do domingo (16) viessem a se tornar um momento de virada, simbolizado pela longa e soturna caminhada de Djokovic até o portão de embarque do aeroporto de Melbourne, escoltado pelas autoridades de imigração.

Djokovic tem 34 anos, e, enquanto ele deixava a Austrália contra a vontade depois que seu visto foi cancelado, uma nova geração de astros do tênis masculino, talentosos e mais altos do que ele, preparava-se para lutar pelo título do torneio de Grand Slam que Djokovic dominou como ninguém. Um torneio que ele talvez jamais volte a jogar se a decisão que o proíbe de entrar no país por três anos não for rescindida.

"Isso certamente seria um golpe pesado para ele", disse John Isner, amigo de Djokovic e um dos tenistas norte-americanos mais bem colocados no ranking. "Honestamente, não sei em que direção as coisas devem caminhar. Pode ser que ele demore muito tempo para se recuperar do acontecido, ou talvez isso o inspire a retornar ainda mais forte."

Djokovic já se recuperou de períodos desmoralizantes no passado e voltou a vencer. Em 2017, depois de talvez a fase mais dominante de sua carreira, ele teve problemas de motivação e perdeu a gana de competir por mais de um ano, em meio a problemas pessoais e a uma lesão persistente no cotovelo direito.

Ele mostrou, naquele período, uma dedicação a métodos naturais de cura que prenunciava sua decisão de não se vacinar contra o coronavírus. Mas, depois de jogar o Australian Open de 2018 com o cotovelo apoiado por uma manga de compressão, ele decidiu, com lágrimas nos olhos, que teria de passar por uma cirurgia.

Cinco meses mais tarde, voltou a ser campeão de um torneio de Grand Slam, conquistando o título de Wimbledon em 2018. E logo se restabeleceu no primeiro posto do ranking, deixando de novo para trás os maiores rivais de sua carreira, Roger Federer e Rafael Nadal.

No começo de 2020, Djokovic continuava em excelente forma, iniciando o ano com 18 vitórias consecutivas antes que a pandemia paralisasse o tênis por cinco meses.

Ele organizou um evento amistoso imprudente na Sérvia e na Croácia em junho daquele ano, durante a paralisação forçada. O torneio se tornou uma fonte de contágio em massa e uma crise de relações públicas, quando surgiram imagens que mostravam o tenista e outros jogadores e membros de suas equipes de apoio, entre os quais Goran Ivanisevic, treinador de Djokovic, dançando sem máscaras em uma festa em uma casa noturna dos Bálcãs, contrariando completamente o clima de cautela que dominava o planeta.

A turnê da ATP, a associação do tênis profissional masculino, foi cancelada. Djokovic e sua mulher, Jelena, Ivanisevic e outros foram apanhados em exames de coronavírus. Quando o tenista retornou aos torneios de Grand Slam, no US Open, causou a própria eliminação nas oitavas de final, ao disparar uma bola com a raquete em um momento de frustração e machucar sem querer uma fiscal de linha, atingida pela bola na garganta.

Ele foi expulso do torneio pelo árbitro-chefe e retornou à Europa para recuperar o controle. O jovem austríaco Dominic Thiem ficou com o título.

Depois de todas as suas decisões dúbias e dos abalos sofridos por sua imagem, outra queda livre de Djokovic não podia ser descartada, mas, em um reflexo de sua tenacidade e talento, ele se recuperou espetacularmente em 2021, com uma das melhores temporadas de sua carreira: venceu os três primeiros torneios de Grand Slam do ano e ficou a uma vitória de conquistar o primeiro Grand Slam masculino de simples em 52 anos, antes de ser derrotado por Daniil Medvedev na final do US Open.

A exibição de resiliência que ele fez em 2021 deveria bastar para causar dúvidas àqueles que acreditam que Djokovic vai se refugiar em seu apartamento em Monte Carlo e se isolar do mundo, depois do acontecido na Austrália.

Estamos falando de um jogador que se tornou campeão a despeito de ter crescido em Belgrado durante a dissolução violenta da Iugoslávia, quando bombardeios da Otan (Organização para o Tratado do Atlântico Norte) ocasionalmente o forçavam a interromper treinos de tênis.

Ele saiu de casa aos 12 anos, para uma academia de tênis na Alemanha, enquanto seus pais e parentes tomavam dinheiro emprestado e improvisavam para bancar seu treinamento. Havia a esperança de que o esporte fosse o caminho para que o filho, e toda a família, encontrasse dias melhores. Djokovic contou que certo dia seu pai, Srdjan, reuniu a família e colocou na mesa uma nota de 10 marcos alemães, explicando que aquele era todo o dinheiro que lhes restava.

"E ele disse que mais do que nunca tínhamos de nos manter unidos, passar por aquilo juntos e descobrir como sair daquela situação", afirmou Djokovic. "Foi um momento muito poderoso e de impacto muito grande em meu crescimento e em minha vida, em todas as nossas vidas."

Comparada a isso, uma deportação não pesa tanto.

Djokovic com os braços abertos e olhando para cima, em postura de descontentamento na quadra de saibro
Djokovic durante jogo em Roland Garros, torneio que ele não sabe se poderá disputar em 2022 - Martin Bureau - 7.jun.21/AFP

Essa é uma afirmação que pode parecer evidente, mas os reveses acumulados pesam. Djokovic está acostumado a ser o excluído, a ouvir os gritos da torcida em apoio a Federer e a outros adversários, e a vencer mesmo assim. No passado, ele chegava a imaginar que a torcida na verdade gritava seu nome; mas nunca tinha sido alvo de tanta hostilidade mundial quanto agora.

Embora insista em que não deseja ser um paladino da oposição às vacinas, as consequências da posição iconoclasta que ele adotou na Austrália –Djokovic é um dos apenas três jogadores que não se vacinaram, entre os 100 primeiros do ranking mundial masculino– o associarão indelevelmente à questão. E, enquanto insistir em não se vacinar, ele enfrentará dificuldades para ingressar em certos países e torneios.

Energia é uma das caraterísticas marcantes de Djokovic. Bastam alguns minutos em companhia dele para perceber sua força vital e curiosidade incansável. Nos últimos anos, ele dedicou muita energia a outras causas que não vencer torneios de tênis: decidiu alterar o status quo na turnê masculina e criar uma nova organização de jogadores a fim de promover –até agora sem sucesso– mudanças no sistema e para conferir mais poder de decisão aos jogadores em todos os níveis do ranking.

Ele ajudou a iniciar um novo torneio em Belgrado, fez trabalhos assistenciais na Sérvia e na região dos Bálcãs e cooperou com um documentário sobre os bastidores de sua vida que deve sair em 2022.

Conteúdo não faltará: tanto triunfos notáveis quanto reveses brutais. Quando é que isso começará a afetar sua fome de vencer? Pode ser que o momento tenha chegado.

Mesmo em sua notável temporada em 2021 houve indícios de uma nova vulnerabilidade em quadra. Djokovic reduziu seu número de partidas, reconhecendo que o tempo passa para todos e que é melhor concentrar a energia nos maiores torneios. Mas ele tropeçou algumas vezes e não atingiu seu objetivo nas Olimpíadas de Tóquio, saindo dos Jogos sem medalha, derrotado por Alexander Zverev nas semifinais de simples.

O Australian Open irá adiante sem Djokovic pela primeira vez desde 2004 e, com Federer também fora por conta de uma lesão, será a primeira vez na longa carreira de Nadal que ele jogará um torneio de Grand Slam como único representante dos Três Grandes.

A era deles foi uma das mais cativantes e duradouras do esporte, e os três dividem o recorde de conquistas de Grand Slam, cada qual com 20 títulos. Que terminem suas carreiras ainda empatados não está fora de questão. A era deles está chegando ao final, tendo em vista suas idades e a ascensão de novos talentos. Tudo o que aconteceu em Melbourne nos 11 últimos dias pode acelerar essa transição.

Tradução de Paulo Migliacci

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