Silvio Lancellotti não corre mais o mundo, mas jamais para de escrever

Referência na cobertura de futebol internacional, ele está afastado da TV há dez anos

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São Paulo

Silvio Lancellotti não sente falta de comentar o Campeonato Italiano na TV. Nem de ser uma espécie de factótum de transmissões esportivas, da vela ao beisebol. Não tem saudade de ser articulista da Folha, veículo pelo qual cobriu os Mundiais de 1990 e 1994.

Silvio Lancellotti sente falta de correr.

Silvio Lancellotti, jornalista, comentarista esportivo e escritor, em sua casa, em São Paulo
Silvio Lancellotti, jornalista, comentarista esportivo e escritor, em sua casa, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

O seu quarto, em uma espaçosa casa na zona centro-sul de São Paulo, é o centro do universo de quem já percorreu o mundo atrás de celebridades e eventos. Livros estão sobre a cama. A televisão, sintonizada em canais de notícias ou esportivos.

Lancellotti, 77, uma das principais referências da imprensa brasileira em futebol internacional, está quase sempre sentado em uma cadeira, diante do computador.

"Minha mãe já dizia: 'Você escreve melhor do que fala'. Eu adoro escrever. Quando não estou fazendo nada, estou escrevendo", resume.

A lembrança das corridas é de quando criava pastores alemães. Cinco anos atrás, estava no banco do passageiro em um veículo que se envolveu em acidente. Ele não gosta de lembrar ou falar sobre isso. Há uma década fora da TV, a não ser em participações esporádicas, com a barba branca longa e cabelo comprido, Lancellotti escreve sem parar. Em vez dos cães, cria gatos, bichos mais caseiros.

Colunista do portal R7, é autor de thrillers policiais. Um deles, "Honra ou Vendetta", virou novela na Record. "Os Assassinos do Abecedário" deve sair em maio pela editora Gulliver.

Ele tem dificuldades de locomoção. Possui duas próteses no corpo, uma no quadril e outra na perna esquerda. A inatividade fez com que desenvolvesse neuropatia periférica, lesão nos nervos do sistema nervoso. Seus tornozelos travam às vezes.

O comentarista, escritor e cozinheiro que dava informações sem parar nas transmissões esportivas dos anos 1990, uma espécie de Google futebolístico antes de existir a internet, tem a voz frágil, rouca, quase sempre baixa.

"Estou com essa merda chamada cansaço nas cordas vocais", queixa-se, antes de rir ao ouvir a pergunta se é algo permanente ou temporário.

"Na minha idade, tudo é permanente."

Lancellotti criou um estilo nas transmissões esportivas e em textos na Folha. Relatava na TV as histórias mirabolantes em que sempre era testemunha ocular ou participante. No jornal, empregava termos diferentes dos usuais. Quando escrevia, uma partida de futebol nunca era uma partida de futebol. Era um "cotejo".

"Por que você tem sempre de usar as mesmas palavras? Por que não resgatar outras que estão esquecidas, mas têm o mesmo significado?", questiona.

Retrato de Silvio Lancellotti para a Folha, em sua casa em São Paulo
Retrato de Silvio Lancellotti para a Folha, em sua casa em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

As histórias que conta continuam fantásticas, rocambolescas. Como ter voltado de Cagliari a Roma, durante a Copa de 1990, como clandestino em um helicóptero da Aeronautica Militare, a força aérea italiana, e ter saltado da aeronave ainda em voo, próximo ao solo, porque o piloto não tinha autorização para pousar.

"Não havia mais passagens, e o conheci [o piloto] no bar em frente ao meu hotel. Precisava ir cobrir Inglaterra e Holanda. Saltei com máquina fotográfica, maleta, caí e quebrei a mão", afirma, explicando que a tala colocada pelo médico o fez criar um hábito que mantém até hoje: digitar com um dedo de cada mão.

Foi o Mundial em que ele lembra ter ficado amigo de Diego Maradona porque ia a Trigoria, onde estava a seleção argentina, todos os dias, com uma fita métrica para medir o diâmetro do inchado tornozelo do camisa 10.

"Ele me via chegar e ria. Foi assim que ficamos amigos", conta, antes de se lembrar do jantar com lagosta que teve com Diego em 1994 e de tê-lo entrevistado dentro do ônibus da seleção após a derrota para a Alemanha na final da Copa de 1990.

Com o título "Maradona deixa a Itália e não sabe se volta a jogar no Napoli", a matéria foi publicada pela Folha na edição de 10 de julho daquele ano.

O estilo, sua maneira de falar, os termos em italiano que usava nas transmissões e as histórias se tornaram uma marca. O grupo humorístico Hermes e Renato criou o personagem Milton Bollotti, uma paródia de Silvio Lancellotti.

"Acho um barato Hermes e Renato. Morro de rir. Coloquei uns vídeos em sequência e mostrei para os meus netos. Vou ficar bravo? Antes do Hermes e Renato, quando eu ainda tinha programa de gastronomia, o Casseta & Planeta inventou [personagem que era] o Silvio Lanchonete, feito pelo Bussunda", recorda.

Milton Bollotti, personagem do grupo Hermes e Renato inspirado em Lancellotti
Milton Bollotti, personagem do grupo Hermes e Renato inspirado em Lancellotti - Reprodução Twitter

Desde que estreou como comentarista de uma partida de futebol (um Milan x Juventus, afirma) ou a partir do primeiro texto que escreveu, Lancellotti sempre se considerou não apenas um repórter, mas "um puta repórter".

"Na Copa de 1990, a Folha me deu um carro zero quilômetro para andar na Itália. Eu devolvi com 30 mil quilômetros rodados 40 dias depois."

Em conversa de uma hora com a reportagem, ele usou a palavra "amigo" para definir sua relação com Boni, Luciano do Valle, Otavio Frias Filho, Arnaldo Jabor, Diego Maradona. Roberto Baggio, Ronaldo Nazário e Erico Verissimo. Citou prêmio que recebeu na Argentina ao reconstituir a saga do doping do craque do país no Mundial de 1994.

Lamentou ter devolvido o título de sócio do Pinheiros, já que suas limitações físicas o impedem de frequentá-lo.

Disse que, ao passar alguns dias na casa de Verissimo, autor de "O Tempo e o Vento", aprendeu que escrever é mais transpiração do que qualquer outra coisa. E Silvio Lancellotti, de uma cadeira em seu quarto, não para nunca de escrever. ​

"O que interessa é o trabalho, é o que você faz. Se você faz com ordem, dedicação e paixão, a inspiração bate."

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