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Ruy Castro

Isabel viveu com a intensidade de um tie-break

Ela nunca parou, e teve tempo de ver que o país ganhou uma nova possibilidade de se reencontrar

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Ruy Castro

Colunista da Folha e escritor. Seus livros mais recentes são “Os perigos do Imperador — Um romance do Segundo Reinado” e “A vida por escrito — Ciência e arte da biografia”, ambos pela Companhia das Letras."

Houve um tempo no Brasil, e nem foi há tanto assim, em que o vôlei era o esporte favorito apenas da família dos jogadores. Com Isabel Salgado e suas companheiras de geração, em fins dos anos 70, isso começou a mudar. Elas atraíram para as quadras a torcida, a televisão e os patrocinadores, e fizeram do vôlei uma paixão nacional, atrás apenas do futebol. Isabel não deixaria por menos.

Aos doze anos, em 1972, ela já estava chegando a 1,80 metro, o que a tornava quase meio metro mais alta do que suas colegas do Colégio Notre Dame, em Ipanema. Por sorte, o colégio se ensaiava no vôlei e tinha como treinador o jovem Enio Figueiredo. Naquele mesmo ano, os dois foram juntos para o Flamengo e, em 1976, ele a levou para a seleção brasileira. Mas Isabel não era mortal como cortadora só na rede. Aos quatorze anos já saíra da casa dos pais; aos dezessete, casou-se com um jogador de basquete do Flamengo; aos dezoito, foi mãe pela primeira vez. Sua vida tinha a intensidade de um tie-break.

Isabel comemora vitória da Sadia sobre a Pirelli, em jogo de 1988; ex-atleta morreu nesta quarta-feira (16) - Vidal Cavalcanti - 23.nov.1988/Folhapress

Ipanema, onde ela nascera em 1960, não era para principiantes nos anos 80. Isabel foi contemporânea de Cazuza, de Angela Ro Ro e da nova turma do surfe, incluindo Petit, o Menino do Rio; do pessoal da Blitz, dos Dzi Croquetes e do bloco de Carnaval Simpatia É Quase Amor; da volta dos exilados, do agito nas areias em frente ao hotel Sol-Ipanema, da tanga de Fernando Gabeira e do assassinato de Zuzu Angel. Quantos na sua idade teriam essa biografia? E não estava sozinha nesse verbete: uma de suas colegas de Notre Dame, Flamengo, seleção brasileira e rebeldia era a levantadora Jacqueline Silva.

Aos 22, Isabel foi mãe de novo, agora com o cineasta Paulo Rufino, e de novo aos 26 e 28, com o também cineasta Ruy Solberg. Mas sua frenética disposição para procriar nunca interferiu em sua vida profissional ---numa dessas, jogou até o sexto mês de gravidez. Acabava de ter um filho e, quinze dias depois, já estava de volta aos treinos. Em 1983, levava sua filha Pilar, quatro anos, aos comícios pelas Diretas-Já. E por que não? Já a levara ainda bebê para a disputa de uma Copa do Mundo.

Em vinte anos de carreira, metade deles no Flamengo e dezesseis na seleção, Isabel disputou mundiais, mundialitos, sul-americanos, pan-americanos e Olimpíadas, sempre como titular. No fim, foi jogar no Toshiba, do Japão, e no Modena, da Itália. Deu-se bem por lá, mas preferiu voltar –esses países ficavam muito longe do Posto 9, seu ponto na praia de Ipanema em que, até há pouco, podia ser vista de manhã, jogando vôlei de praia. Foi a este, aliás, que se dedicou ao deixar as quadras e, de passagem, foi campeã do mundo em 1994, em Miami.

Isabel nunca parou. Em 2020, em plena pandemia, ajudou a arregimentar atletas, ex-atletas, dirigentes e artistas num movimento, Esporte pela Democracia, que, sem citar Bolsonaro –e precisava?–, exigia do governo federal respeito à Constituição. Como se sabe, não foram atendidos, mas, pelo menos, Isabel teve tempo de ver que o país ganhou uma nova possibilidade de se reencontrar.

Há dias, ela fora indicada para a pasta do esporte num dos grupos de transição do governo Lula. Uma pneumonia relâmpago a acometeu e a levou em 48 horas. Era a única maneira de ser vencida.

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