Entenda por que o confronto entre Irã e EUA vai além do futebol

Duelo desta terça (29), no Qatar, decide vaga nas oitavas e deve focar mais a relação entre torcedores e jogadores iranianos

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Belo Horizonte

Há 24 anos, Irã e Estados Unidos se enfrentavam pela primeira vez em uma Copa do Mundo.

À época, constantes conflitos entre as classes políticas dos dois países fizeram da partida uma das mais politizadas da história do campeonato mundial.

Nesta terça-feira (29), as duas seleções voltam a se encontrar, mas em outro contexto: os recentes protestos no país do Oriente Médio dissiparam a rivalidade entre os dois times, e a atual pressão política paira apenas sob os jogadores iranianos e sob o regime islâmico.

EUA e Irã se encontrarão às 16h (de Brasília), no estádio Al Thumama, em Doha, para definir o futuro de cada um no Mundial no Qatar. Estão no Grupo B, que tem também Inglaterra e País de Gales.

Jogadores das seleções do Irã e dos EUA posam juntos, antes de jogo da Copa do Mundo, em Lyon, na França
Jogadores das seleções do Irã e dos EUA posam juntos, antes de jogo da Copa do Mundo, em Lyon, na França - Juca Varella - 21.jun.98/Folhapress

O confronto de 1998, na Copa na França, começou ainda em dezembro do ano anterior, quando a Fifa sorteou os grupos do torneio.

Na ocasião, o Grupo F já tinha Alemanha, EUA e Iugoslávia –conforme as regras do campeonato, a quarta vaga seria preenchida por Irã ou Colômbia. O país do Oriente Médio foi o sorteado, causando imediatamente ansiedade nos dois lados.

"Foi extraordinário porque todos nós sentimos o enorme significado político daquela partida", disse Tom King, diretor-gerente da seleção americana, a um ótimo documentário da BBC sobre o confronto.

A partir daí, a mídia iraniana, ligada ao regime, intensificou a cobertura da seleção e tratou a partida como uma das mais importantes da história do futebol do país.

O jogo aconteceria a pouco menos de dez anos do fim da guerra entre Irã e Iraque, este último apoiado financeiramente pelos EUA, que encaravam a Revolução Islâmica no Irã como uma ameaça.

"Não vamos perder. Muitas famílias de mártires esperam que vençamos", afirmou o atacante iraniano Khodadad Aziz dias antes do jogo, referindo-se aos 500 mil compatriotas que morreram ou ficaram feridos na guerra.

Aziz era o principal jogador da seleção naquele período e até hoje é considerado um dos melhores futebolistas da história do país.

O contexto político da partida também foi bastante explorado pelo regime, que via o futebol como uma ferramenta de expansão da popularidade da Revolução Islâmica.

Até por isso, dias antes da partida, a Federação de Futebol do Irã anunciou que seus jogadores não cumprimentariam os americanos durante a partida –segundo o regulamento da Fifa, cabe ao time B do chaveamento se enfileirar e cumprimentar os adversários após a execução dos hinos nacionais.

A ordem teria vindo diretamente do líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei.

Tal decisão fez com que a Fifa abrisse uma exceção em seu protocolo. Após uma série de negociações, a federação conseguiu que a seleção americana fosse a responsável por cumprimentar os iranianos.

Em troca, os jogadores do país do Oriente Médio entregariam rosas brancas aos adversários e, por fim, os dois times posariam intercalados para uma foto.

Ainda que com intensidade menor, o governo americano também explorou politicamente a partida.

Três dias antes do jogo, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, gravou um vídeo dizendo esperar que o confronto fosse "mais um passo para acabar com o distanciamento entre as duas nações".

Paralelamente, um mês antes da partida, a agência de segurança europeia descobriu que a Al Qaeda pretendia atacar a seleção dos EUA no hotel em que os jogadores estariam hospedados na França.

O plano também consistia em matar futebolistas e torcedores da seleção inglesa na partida contra a Tunísia, válida pela Copa do Mundo.

Ainda que o esquema tenha sido descoberto, os dias do time americano no torneio foram acompanhados por dezenas de agentes de segurança.

Por fim, o Irã venceu os EUA por 2 a 1. O resultado significou a primeira vitória dos iranianos em uma Copa do Mundo e eliminou os americanos do torneio. Em Teerã, milhares de pessoas saíram às ruas para comemorar.

Em 2022, porém, o que menos importa é o resultado da partida. O Irã vive há mais de dois meses uma série de protestos contra o regime.

As manifestações começaram após a morte de Mahsa Amini, 22, que estava sob custódia da polícia moral do país por supostamente não usar o hijab, o véu islâmico, da forma correta.

Os protestos já deixaram ao menos 416 mortos, 51 dos quais crianças, segundo a ONG Iran Human Rights (IHR), com sede na Noruega.

"O contexto atual é muito diferente do de 1998 porque naquela época havia passado poucos anos da guerra; agora, é mais sobre uma revolução acontecendo dentro do Irã", disse à Folha Pasha Hajian, fundador de um podcast sobre futebol iraniano.

A tensão política, aliás, afeta até mesmo a forte e histórica ligação do povo iraniano com sua seleção. Nas últimas semanas, manifestantes têm criticado os jogadores, associados, de certa forma, ao regime.

Para Hajian, no entanto, as críticas são injustas. Ele cita, por exemplo, as reações dos jogadores iranianos sobre os protestos.

Em um amistoso ainda antes da Copa no Qatar, os futebolistas entraram em campo e permaneceram durante a execução do hino nacional vestidos com casacos pretos, cobrindo o uniforme que os identifica como a equipe do Irã.

No Qatar, os jogadores não cantaram o hino nacional na partida contra a Inglaterra; a primeira do time na Copa deste ano –o protesto não se repetiu na sexta (25), quando o Irã enfrentou o País de Gales.

"A pressão para vencer o jogo de 1998 era maior porque, naquela época, as notícias que chegavam aos jogadores diziam que os EUA eram inimigos. Mas agora as gerações mudaram, e os iranianos estão mais próximos do mundo. Cerca de 20 jogadores da seleção, aliás, jogam na Europa; naquela época, era muito menos", afirma Hajian.

Curiosamente, os únicos dois jogadores que apoiam publicamente o regime jogam em um time do próprio país.

Por todas essas circunstâncias, o foco da partida desta terça será muito mais na relação entre os torcedores e os jogadores iranianos; ao menos desta vez os americanos serão coadjuvantes.

"O jogo de agora não é mais entre Irã e EUA. São os jogadores da seleção iraniana contra seus próprios torcedores, ou, como alguns gostam de dizer, será o jogo do Irã contra a República Islâmica do Irã", diz Hajian.

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