Relatório culpa Uefa por superlotação e incidentes na final da Champions League

Investigação independente aponta que ninguém ter morrido foi 'uma questão de sorte' e faz alerta sobre Jogos Olímpicos

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Tariq Panja
The New York Times

Uma investigação independente que durou meses sobre a perigosa superlotação que colocou em risco a segurança de milhares de torcedores na final da Champions League, no ano passado em Paris, atribuiu a culpa diretamente ao órgão regulador do futebol europeu, Uefa, que organizou o jogo. O fato de ninguém ter morrido na confusão diante dos portões do estádio foi apenas "uma questão de sorte", concluiu o relatório duramente crítico dos investigadores.

A investigação, que incluiu dezenas de entrevistas e a revisão de horas de vídeo filmado por torcedores, concluiu que altos dirigentes da Uefa cometeram vários erros nos preparativos para a final entre Liverpool e Real Madrid, criando uma situação em que as falhas de planejamento não foram detectadas nem solucionadas rapidamente e, em seguida, tentaram transferir para os torcedores a responsabilidade pelo congestionamento que colocou em risco sua segurança.

Embora o relatório, com mais de 200 páginas, tenha atribuído parte da responsabilidade pelas cenas caóticas diante do Stade de France a vários outros órgãos, incluindo a polícia francesa e a Federação Francesa de Futebol, disse que o proprietário do evento, a Uefa, "assume a responsabilidade principal por falhas que quase levaram ao desastre".

Torcedores tentam se proteger do gás lacrimogêneo - Fernando Kallas - 28.mai.22/Reuters

Os torcedores do Liverpool suportaram o maior perigo, já que a desorganização, além das greves dos transportes locais, levou a confrontos perigosos em que milhares de pessoas ficaram presas entre as cercas, sem ter para onde ir. O relatório disse que o perigo foi exacerbado pelo uso indiscriminado e generalizado de gás lacrimogêneo por policiais antes do jogo, a primeira final da Liga dos Campeões com grande multidão após dois anos de restrições devido à pandemia.

E o relatório deixou poucas dúvidas de que o dia poderia ter sido mortal, fazendo uma comparação direta com o desastre de Hillsborough, em 1989, no qual erros de policiamento produziram uma aglomeração dentro de um estádio inglês que acabou causando a morte de 97 pessoas.

"Na opinião do painel", escreveram os investigadores ao comparar os dois incidentes, "os diferentes resultados foram uma questão de sorte".

Enquanto as cenas fora do Stade de France ainda se desenrolavam, foram feitos esforços para culpar os torcedores pelo caos, disseram os investigadores. Ciente do cenário preocupante, a Uefa anunciou que o início do jogo seria adiado devido à chegada "atrasada" dos torcedores. "Essa afirmação era objetivamente falsa", disse o relatório.

Mais tarde, autoridades francesas, incluindo o ministro do Interior, Gérald Darmanin, culparam os torcedores ingleses pelo que Darmanin disse ser uma "fraude maciça, industrial e organizada de ingressos falsos". O relatório, encomendado pela Uefa, descobriu que havia poucas evidências para sustentar a afirmação.

A Uefa e seus principais dirigentes, principalmente o chefe de eventos, Martin Kallen, foram apontados como responsáveis pelo que um dos principais autores do relatório descreveu como um "quase erro".

"Houve uma falha contributiva de outras partes interessadas, mas a Uefa estava ao volante", disse o relatório.

A publicação do relatório final ocorreu vários meses depois do previsto; dirigentes da Uefa sugeriram que seria concluído em setembro. A investigação envolveu centenas de entrevistas e análise de imagens, incluindo muitas horas de vídeo filmado por torcedores presos no meio do tumulto enquanto tentavam entrar no estádio. Gargalos perigosos, entradas e rampas lotadas e gás lacrimogêneo empregado pela polícia –às vezes borrifado indiscriminadamente em grupos de torcedores que incluíam crianças e pessoas com deficiência– aumentaram o caos.

"Infelizmente, o entusiasmo em torno do jogo rapidamente se transformou num verdadeiro 'quase erro', que foi prejudicial para um número significativo de torcedores de ambos os clubes", disse o relatório. "Isso nunca deveria ter acontecido em um evento esportivo tão importante, e é inaceitável que tenha ocorrido no coração do continente europeu."

O uso do termo "quase erro", disse o painel, foi deliberado e acordado por todas as partes interessadas entrevistadas para significar "um evento que quase se transforma em uma catástrofe de fatalidade em massa".

O relatório levantou novas preocupações sobre os preparativos de segurança para os Jogos Olímpicos do próximo ano, em Paris, com seus autores descrevendo os eventos em torno da final da Champions como um "alerta" para os organizadores olímpicos. O painel disse que as evidências coletadas por Michel Cadot, autoridade do governo francês responsável por grandes eventos esportivos, sugerem que ainda há "uma concepção errônea sobre o que realmente aconteceu e uma complacência em relação ao que precisa mudar".

Uma investigação anterior sobre a decisão da Liga dos Campeões feita por dois comitês parlamentares franceses também atribuiu a culpa às autoridades, rotulando a perigosa superlotação de um "fiasco" causado por uma combinação de coordenação defeituosa, mau planejamento e erros das autoridades responsáveis pela organização e pela segurança.

O novo relatório oferece uma visão mais completa de como foi o dia, pintando um quadro de caos organizacional, com decisões tomadas por indivíduos sem conhecimento adequado do que estava acontecendo em tempo real. Segundo o texto, o presidente da Uefa, Aleksander Ceferin, foi instado a fazer uma ligação para atrasar o início do jogo, embora não estivesse na sala de controle da partida ou em contato com as autoridades de segurança. Ele estava em encontro com o rei da Espanha em uma área VIP.

Torcedores aglomerados em portão estiveram sob risco - Thomas Coex - 28.mai.22/AFP

Visto em sua totalidade, o relatório tenta mostrar como a Uefa delegou a operação de segurança no estádio e se afastou de qualquer supervisão, a tal ponto que "marginalizou" sua própria unidade de segurança e proteção, chefiada por Zeljko Pavlica, um confidente de Ceferin.

Os torcedores que chegaram ao estádio foram recebidos por batalhões da polícia de choque francesa, vestidos com roupas de proteção e com suprimentos que incluíam cassetetes, escudos e spray de pimenta.

"A polícia, incontestada e aceita sem questionamento por outras partes interessadas, adotou um modelo voltado para uma ameaça inexistente de ‘hooligans’ do futebol", escreveu o painel, acrescentando: "Em última análise, as falhas dessa abordagem culminaram em uma operação policial que empregou gás lacrimogêneo e pimenta spray, armamento que não tem lugar em um festival de futebol".

O relatório é uma leitura desconfortável para a Uefa, com alguns de seus principais dirigentes sob escrutínio por suas ações no dia e no planejamento do maior jogo do calendário europeu de futebol.

"Os altos funcionários da Uefa permitiram que isso acontecesse, embora as deficiências de seu modelo fossem amplamente conhecidas no alto nível de gerenciamento", concluiu o relatório.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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