Paulão, 41, viu as cenas de racismo e a revolta de Vinicius Junior. A contragosto, teve de lembrar do seu passado. Ele foi uma das vítimas de ofensas raciais no futebol espanhol que ficaram impunes. Casos às vezes até esquecidos.
É o que ele acredita que vai acontecer com quem atacou o atacante do Real Madrid e da seleção brasileira.
"Hoje, o Vinicius deve estar recebendo trilhões de mensagens. Amanhã todo mundo esquece. Fica para gente, para quem sofreu, para quem sentiu. Fica a pergunta se no próximo jogo vai ser igual… Isso traz raiva. Mas é algo que fica com a gente", afirma ele.
[Ver o caso de Vinicius Junior] É como desenterrar o passado
Zagueiro revelado pelo Atlético Mineiro, Paulo Afonso Santos Júnior hoje tem uma escolinha em Lagoa Santa, cidade do interior de Minas Gerais, sua terra natal. Trabalha também como empresário de jogadores para uma empresa portuguesa. Jogou em Portugal (Naval, Braga e Olhanense), França (Saint-Etienne), México (San Luis).
Sua passagem pelo Real Bétis, na Espanha, ficou marcada pelo clássico contra o Sevilla, em 2013.
"[Ver o caso de Vinicius Junior] É como desenterrar o passado", constatou.
Ao ser expulso, ouviu parte da própria torcida do seu time, no estádio Benito Villamarín, chamá-lo de macaco e fazer sons do animal. Confessa ter ficado na dúvida a quem era direcionado aquilo até que os companheiros depois lhe disseram: eram realmente para o brasileiro.
"Só quem passa por isso entende o sentimento. É vontade de largar tudo e ir ficar perto da família. Quem sou eu perto do Vinicius Junior? Ele é um nome mundial. Mas acredito que o sentimento que tem é bem próximo do que me aconteceu naquele dia", confessa.
Vinicius Junior acusou a torcida do Valencia de racismo na partida do último domingo (21), contra o Real Madrid, no Estádio Mestalla. Em confusão com adversários, ele ainda foi expulso. É a 10ª vez que o jogador sofre com questões raciais na Espanha.
O Valencia anunciou ter identificado um torcedor que teria ofendido o atleta e trabalha para encontrar outros. O Real e o governo brasileiro pediram providências às autoridades do país.
Ninguém foi punido no caso de Paulão, assim como em outras acusações de racismo feitas no futebol espanhol.
O caso de Vinicius reabriu as feridas da disputa entre Juan Cala, do Cádiz, e Mouctar Diakhaby, do Valencia.
Em abril de 2021, Diakhaby acusou Cala de ter-lhe chamado de "negro de merda" em jogo entre os dois times. Jogadores do Valencia deixaram o campo e depois gravaram vídeos de desagravo ao francês. O adversário sempre negou a acusação, arquivada pela Justiça desportiva por falta de provas.
"Hoje, Paulista [zagueiro brasileiro do Valencia] e o amigo não saíram de campo doídos, não? Hoje não há comunicados nem vídeos. Hoje a torcida exemplar não vai sair a acusar, não? O tempo e só o tempo põe cada palhaço em seu lugar", escreveu Cala no Twitter.
A resposta de Diakhaby não tardou.
"Você continua falando porque te protegeram muito bem. Assim, que cale-se um pouco."
O excesso de discurso e as poucas ações fazem com que Paulão seja descrente com relação a punições severas depois do que aconteceu a Vinicius Junior. Ele usa sempre o próprio exemplo como régua. Por que algum clube será punido por ofensas racistas?
"Não vai mudar nada. Você vê as entrevistas do presidente de LaLiga, de jornalistas… Em momento nenhum se posicionam. Não vai ser o torcedor que vai ter a atitude de mudar. Acha que vão fazer alguma coisa? Envolve muito dinheiro. Muita coisa. Imagina quantos milhões de reais estão envolvidos. Tem de acontecer a partir dos dirigentes e nada vai acontecer", sentencia o ex-zagueiro.
Presidente de LaLiga, Javier Tebas disse que não poderia permitir que Vinicius Junior manchasse a imagem da competição.
Outros brasileiros também já foram alvos de racismo na Espanha neste século. Torcedores do Atlético de Madrid cantaram para o lateral Marcelo, do Real, que ele era um macaco. Daniel Alves foi alvo de gritos que imitavam este mesmo animal em confrontos do Barcelona diante de Espanyol e Villarreal. Os dois casos aconteceram em 2014.
Ao ver uma banana jogada no campo, Alves a descascou e comeu. O Villareal identificou a pessoa e a baniu de seu estádio.
Ronaldo atirou uma garrafa em torcedores do Málaga ao ouvir ofensas raciais em 2005. No mesmo ano, Julio Baptista reclamou receber vaias por causa da cor de sua pele.
Africanos também tiveram problemas. O goleiro camaronês Carlos Kameni, do Espanyol, chegou a ser perguntado pelo árbitro se queria que uma partida contra o Zaragoza, em 2004, fosse interrompida por causa das ofensas. No mesmo ano e pelo Barcelona, Samuel Eto’o, camaronês como Kameni, ameaçou abandonar o campo em outro jogo realizado no estádio do Zaragoza.
Nos anos 1990, o goleiro nigeriano Wilfred Agbonavbare, do Rayo Vallecano, ouviu pessoas no Santiago Bernabéu cantarem em um jogo contra o Real Madrid: "negro filho ***, colha o algodão".
No dérbi catalão de 2018, o zagueiro francês do Barcelona Samuel Umtiti, nascido em Camarões, alegou ter ouvido Sergio García, do Espanyol, chamá-lo de "negro". García negou.
Iñaki Williams, atacante espanhol de ascendência ganesa, foi insultado pela torcida do Sporting Gijón em 2016 e a partida foi paralisada.
São casos que aumentam a descrença de Paulão de que alguma coisa vai mudar.
"Não consigo explicar o que passa na cabeça das pessoas para terem atitudes como essa [os racistas]. Acho que daqui a pouco aparece outro assunto e [o racismo] fica como cortina de fumaça. As pessoas não são identificadas e nem vão ser. No Brasil também é assim. Esse é o mundo", constata Paulão.
Relatório elaborado pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol e pelo Museu da Universidade do Rio Grande do Sul aponta que em 2021 ocorreram 64 casos de racismo no futebol brasileiro.
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