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A
classe média ferida de morte nos seus interesses é
um dado novo da vida social
(17/10/1999)
Uma
metamorfose política
MILTON
SANTOS
O chamado milagre econômico brasileiro foi acompanhado de
muitas "explosões", dentre elas um crescimento
contínuo das classes médias, primeiro nas grandes
cidades e depois nas cidades menores e no campo modernizado. Como
essa expansão foi acelerada, é lícito falar
em explosão das classes médias, que, neste meio século,
acompanha a explosão demográfica, a explosão
urbana e a explosão do consumo e do crédito.
Esse conjunto de fenômenos tem relação com o
aumento da produção industrial e agrícola,
como também do comércio, dos transportes, das trocas
de todos os tipos, das obras públicas, da administração
e da necessidade de informação. Há, paralelamente,
uma expansão e diversificação do emprego, ainda
que uma parcela importante dos que se dirigiram às cidades
não pudesse ser assalariado formal, só encontrando
trabalho no circuito inferior da economia.
Um sentimento de segurança é infundido na classe média
pelos programas governamentais que lhe facilitam a aquisição
da casa própria, programas de que foram os beneficiários
privilegiados, enquanto os brasileiros mais pobres apenas foram
incompletamente
atendidos nos últimos anos do regime autoritário.
Vale realçar que no Brasil do milagre, e durante boa parte
dos anos 80, a classe média se expandiu e se desenvolveu
sem que houvesse verdadeira competição dentro dela
quanto ao uso dos recursos que o mercado ou o Estado lhe ofereciam
para a melhoria do seu poder aquisitivo e do seu bem-estar material.
Daí a sua relativa coesão e a consciência de
haver tornado um poderoso estamento. A competição
é, na realidade, com os pobres, cujo acesso aos bens e serviços
torna-se cada vez mais difícil, na medida em que estes se
multiplicam e diversificam. A classe média é a grande
beneficiária do crescimento econômico, do modelo político
e dos projetos urbanísticos adotados.
Tudo o que alimenta a classe média dá-lhe, também,
um sentimento de inclusão no sistema político e econômico
e um sentimento de segurança, estimulado pelas constantes
medidas do poder público em seu favor. Tratava-se, na realidade,
de uma moeda de troca, já que a classe média constituía
uma base de apoio às ações do governo. Tal
classe média, ao mesmo tempo em que se diversifica profissionalmente,
aumenta o seu poder aquisitivo e melhora qualitativamente, por meio
das oportunidades de educação que lhe são abertas,
tudo isso levando à ampliação do seu bem-estar
(o que hoje se chama de qualidade de vida), conduzindo-a a acreditar
na garantia de preservação das suas vantagens e perspectivas.
Forma-se, dessa maneira, uma classe média mais apegada ao
consumo que à cidadania, sócia despreocupada do crescimento
e do poder, com os quais se confundia. Eram essas, aliás,
condições necessárias a um crescimento econômico
sem democracia. Quando esta se instala incompletamente nos anos
80, guarda esses vícios de origem, sustentando um regime
representativo falsificado pela ausência de partidos políticos
consequentes. Seguindo essa lógica, as próprias esquerdas
são levadas a dar mais espaço às preocupações
eleitorais e menos à pedagogia propriamente política.
Tal situação tende agora a mudar, quando a classe
média começa a conhecer a experiência da escassez,
o que poderá levá-la a uma reinterpretação
de sua situação. Nos anos recentes, primeiro de forma
lenta ou esporádica e já agora de modo mais sistemático
e continuado, a classe média conhece dificuldades que lhe
apontam uma situação existencial bem diferente daquela
que conhecera há poucos anos.
Tais dificuldades chegam num tropel: a educação dos
filhos, o cuidado com a saúde, a aquisição
ou o aluguel da moradia, a possibilidade de pagar pelo lazer, a
falta de garantia no emprego, a deterioração dos salários
e o crescente endividamento estão levando ao desconforto
quanto ao presente e à insegurança quanto ao futuro,
tanto o futuro remoto quanto o imediato. Tais incertezas são
agravadas pelas novas perspectivas da previdência social e
do regime de aposentadorias, da prometida reforma dos seguros privados
e da legislação do trabalho. A tudo isso se acrescentam,
dentro do próprio lar, a apreensão dos filhos em relação
ao seu futuro profissional e as manifestações cotidianas
desse desassossego.
Já que não mais encontram os remédios que lhe
eram oferecidos pelo mercado ou pelo Estado como solução
aos seus problemas individuais emergentes, as classes médias
ganham a percepção de que já não mandam,
ou de que já não mais participam da partilha do poder.
Acostumadas a atribuir aos políticos a solução
dos seus problemas, proclamam, agora, seu descontentamento, distanciando-se
deles. Instalam-se num desencanto mais abrangente quanto à
política propriamente dita, justificado, em parte, pela visão
de consumidor desabusado de que se alimentou durante décadas,
agravada com a fragmentação pela mídia, sobretudo
televisiva, da informação e da interpretação
do processo social. Tudo isso fortalece nas classes médias
a certeza de não mais influir politicamente, levando-as,
não raro, a reagir negativamente, isto é, a desejar
menos política e menos participação, quando
a reação correta poderia e deveria ser exatamente
a oposta.
É certo, pois, que a atual experiência de escassez
não conduza necessariamente à desejável expansão
da consciência. Quando esta se impõe, não o
faz igualmente, segundo as pessoas. Visto esquematicamente, tal
processo pode ter, como um primeiro degrau, a preocupação
de defender situações individuais ameaçadas
e que se deseja reconstituir, retomando o consumo e o conforto material
como o principal motor de uma luta, que, desse modo, pode se limitar
a novas manifestações de individualismo.
É num segundo momento que tais reivindicações,
fruto de reflexão mais profunda, podem alcançar um
nível qualitativo superior, a partir de um entendimento mais
amplo do processo social e de uma visão sistêmica de
situações aparentemente isoladas, levando à
decisão de participar de uma luta pela sua transformação,
quando o consumidor assume o papel de cidadão.
Seja como for, as classes médias brasileiras, já não
mais aduladas e feridas de morte nos seus interesses materiais e
espirituais, constituem, em sua condição atual, um
dado novo da vida social e política. Mas seu papel não
estará completo enquanto não se identifique com os
clamores dos pobres, contribuindo juntos para a regeneração
dos partidos, inclusive os partidos do progresso.
Enquanto estes aceitarem as tentações do triunfalismo
oposicionista e do oportunismo eleitoreiro, limitando-se às
respectivas mobilizações ocasionais, estarão
desgarrados do seu papel de formadores não apenas da opinião,
mas da consciência cívica sem a qual não pode
haver neste país política verdadeira. As classes médias
brasileiras, mais ilustradas e, também, mais despojadas,
têm agora a tarefa histórica de forçar os partidos
a completar, no Brasil, o trabalho, ainda não terminado,
de implantação de uma democracia que não seja
apenas eleitoral, mas, também, econômica, política
e social.
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