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Banimento
da cena política de Florença permitiu a Maquiavel
escrever obras como "O Príncipe"
(28/2/1999)
Elogio
do ostracismo
EVALDO CABRAL DE MELLO
Em
Florença, em 1512, o retorno dos Médici ao poder enterrou
o regime republicano restaurado 20 anos antes na esteira da pregação
integrista de Savonarola e da invasão francesa da Itália.
Do dia para a noite, Niccolò Machiavelli, o secretário
da segunda chancelaria florentina, caiu no ostracismo. Em vez de
se ocupar das questões de Estado, para as quais se considerava
especialmente vocacionado, ei-lo reduzido a sobreviver mediante
a gestão de San Casciano, pequena propriedade rural herdada
do pai, a cerca de 30 quilômetros da cidade.
Que fazia ali? De manhãzinha, capturava pássaros e
ocupava-se com providências práticas, como a de supervisionar
a derrubada de um bosque, cuja madeira vendia, tagarelando com os
lenhadores e barganhando com os compradores. À sombra de
uma fonte ou sentado no viveiro, relia Dante, Petrarca ou Ovídio.
O almoço tinha a frugalidade do de um camponês do Mediterrâneo:
apenas os alimentos que lhe fornecia o sítio ou que lhe permitiam
os rendimentos modestos. À tarde, encanalhava-se no albergue
da estrada, ouvindo as novidades trazidas pelos passantes ou jogando
com gente do povo, entre disputas e palavrões.
Esgotando ao longo do dia o que reputava a malignidade da sua sorte,
vingava-se à noite, quando, vestido com apuro urbano, entregava-se
à leitura dos historiadores clássicos, sobretudo Tito
Lívio e Políbio, com quem "nutro-me do alimento
que é verdadeiramente o meu e para o qual nasci. E durante
quatro longas horas, não sinto mais o tédio, esqueço
minha miséria, já não temo a pobreza nem me
deixo intimidar pela morte". Em resumo: o estudo das ações
dos grandes homens do passado tornara-se a compensação
da sua inatividade forçada.
Restavam-lhe 15 anos de vida, prazo que lhe será mais do
que suficiente para escrever todas as grandes obras que lhe assegurarão
no Ocidente uma influência indizivelmente superior à
que poderia haver jamais exercido na Itália, caso os Médici
o houvessem chamado de volta à Signoria. Maquiavel não
suspeitava, contudo, da fortuna a que seu pensamento estava fadado;
e, se o formula, será, em grande parte, no fito de conseguir
sua reabilitação política.
Tudo o que obteve, porém, foi a designação
de historiador oficial, que lhe permitirá redigir as "História
de Florença" (Ed. Musa), espécie de laboratório
para testar a teoria política que havia formulado no "Príncipe"
e nos "Comentários"; e duas ou três missões
anódinas em cidades vizinhas. Essas foram, aliás,
o quanto bastou para comprometê-lo aos olhos dos antigos correligionários
republicanos quando o equilíbrio político da Itália
foi novamente posto à prova pela vitória espanhola
de Pavia e pelo saque de Roma. Restaurada provisoriamente a República
Florentina, ninguém se lembrará dele. A piada banal
é inevitável: na sua atividade política, Maquiavel
não foi nada maquiavélico.
Sua biografia contrafatual poderia pressupor duas inflexões
alternativas no seu destino. Pela primeira, os Médici não
teriam retomado o poder em 1512 e ele teria prosseguido sua carreira
de alto funcionário. Pela segunda, os Médici o teriam
realmente empregado a seu serviço, como haviam feito por
exemplo, com um colega, Francesco Vettori, cuja amizade Maquiavel
cultivou na esperança da reabilitação. O problema
consiste em que, em nenhuma dessas hipóteses, o nosso autor
teria conhecido uma autêntica celebridade, seja como homem
de ação, seja sequer como eminência parda, à
maneira do frei Joseph, agente de Richelieu. O contemporâneo
e conterrâneo de Maquiavel Francesco Guicciardini, também
associado à história da teoria da razão de
Estado, teve uma carreira diplomática bem-sucedida, mas nada
realizou de notável, tornando-se exclusivamente lembrado
pela "História da Itália", que recebeu a
honra insigne de ser traduzida para o castelhano, já no século
17, por Felipe 4º. Quanto a Vettori, outro triunfador do curto
prazo, só o conhecemos por haver sido precisamente o destinatário
de cartas de Maquiavel.
A situação da Itália, dividida contra si mesma,
mero objeto na luta das grandes potências, que eram a Espanha
e a França, não se prestava ao programa político
a que o ostracizado de San Casciano teria ambicionado servir, vale
dizer, o fim da influência estrangeira na península
graças à ação de um homem providencial,
da têmpera de um César Borgia ou de um Fernando o Católico,
e de quem ele, o secretário, seria o guru. Pois originalmente
o maquiavelismo, ao menos o maquiavelismo de Maquiavel, não
deveria ser apenas o instrumento para chegar ao poder, mas também
para colocá-lo ao dispor de um grand design.
A conclusão melancólica se impõe: caso tivesse
sido chamado pelos Médici, sua obra não teria sido
escrita ou teria ficado pela metade, sem que ele tivesse nem sequer
o consolo patriótico de ver a Itália livre do estrangeiro.
Seus livros só serão publicados após sua morte;
e a unidade italiana levará mais de 300 anos para ser realizada.
Ele seria certamente o primeiro surpreendido ao saber da própria
imortalidade e de que ela lhe viera de onde menos a esperava, isto
é, dos escritos das suas noites estudiosas de San Casciano.
Como tantos homens de reflexão tentados pela ação
política, Maquiavel correu o risco desse acontecimento verdadeiramente
trágico na existência de um indivíduo de inteligência
superior, a infidelidade à própria vocação,
a qual imprime a tudo que faz o estigma da inautenticidade. Ação
e reflexão são atividades que exigem, cada uma separadamente,
qualidades que mutuamente se repelem. São bem raros os que
possuem ambas; mesmo nesses casos, haverá que, mais cedo
ou mais tarde, melhor mais cedo do que mais tarde, optar pelo exercício
exclusivo de uma delas sob pena de não se realizar nenhuma.
A biografia do secretário florentino é um caso-limite
do fenômeno, que se repete todos os dias, do homem de talento
disposto a vender a alma ao diabo, vale dizer, preparado para sacrificar
a formulação das suas idéias, por mais inteligentes
que lhe pareçam, à satisfação passageira
de haver impingido ao príncipe de plantão ao menos
uma parte delas. Na história luso-brasileira, o exemplo do
padre Antônio Vieira, eminência parda de d. João
4º, a excogitar silogismos irrefutáveis para justificar
a entrega do Nordeste aos holandeses. E, contudo, como era ele encarado
na corte do Bragança? Da maneira pela qual todo homem de
reflexão é visto nos círculos políticos
que frequenta, isto é, sob desconfiança. Não
é outro o sentido do que referiu seu contemporâneo,
o conde da Ericeira. Após reconhecer que o jesuíta
fora "o maior pregador do seu tempo", o historiador aduz
a sentença condenatória: "Como o seu juízo
era superior e não igual aos negócios (públicos),
muitas vezes se lhe desvaneceram por querer tratá-los mais
sutilmente do que os compreendiam os príncipes e ministros,
com quem comunicou muitos de grande importância". Por
inteligência, não por delicadeza, Vieira perdera sua
vida pública. Escusado assinalar que ele leu, e não
gostou, a afirmação de Ericeira, a quem dirigiu uma
longa missiva, depoimento de grande importância para a história
da restauração portuguesa, a que acrescentou, contudo,
algumas lorotas destinadas a deixá-lo bem perante a posteridade.
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