Otavio Frias Filho era um radical defensor da liberdade de expressão

Se vivo, jornalista estaria dividido entre reconhecimento da legitimidade da verbalização autoritária de Bolsonaro e a crítica feroz a retrocessos

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Luís Francisco Carvalho Filho

Colunista da Folha e advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004)

São Paulo

A misoginia, a ignorância, a liturgia de quartel em vez de austeridade republicana, a regressão institucional, o populismo, a pauta moral, a animosidade em relação à imprensa e aos adversários, a gestão criminosa da pandemia: se estivesse vivo, Otavio Frias Filho teria horror de Jair Bolsonaro.

Otavio tinha o que Marcelo Coelho definiu como “gosto pela especulação extravagante, pela fantasia ociosa, pelo nonsense, pela brincadeira benfazeja”. Construir listas com amigos. As dez melhores peças de teatro. Fazer prognósticos. Quem vai se eleger.

Acharia graça deste desafio que me foi dado, próprio de napoleões de hospício, de arriscar, enfim, qual seria a sua atitude em relação ao presidente da República no centenário do jornal.

Nascido em São Paulo, em 7 de junho de 1957, Otavio Frias Filho morreu de câncer na madrugada de 21 de agosto de 2018, deixando a mulher Fernanda Diamant e duas filhas pequenas, Miranda e Emília.

O publisher da Folha Octavio Frias de Oliveira com o filho Otavio ainda criança, em 1960
O publisher da Folha Octavio Frias de Oliveira com o filho Otavio ainda criança, em 1960 - Folhapress

Diretor de Redação da Folha desde 1984, foi responsável pela condução, às vezes implacável, de um jornal crítico, pluralista e apartidário.

Otavio acreditava que Bolsonaro não se elegeria. Na sua visão, seria superado por outro candidato, menos hostil ao establishment e capaz de atrair a centro-direita. Em agosto de 2017, na Ilustríssima, traçou o esboço deste raciocínio que se revelaria errôneo. O Brasil é “terreno pouco propício ao êxito de doutrinas fanáticas”. A “postulação do deputado Jair Bolsonaro deverá se esvaziar”.

A facada aconteceu duas semanas depois da morte de Otavio, um mês antes do primeiro turno. A ascensão de Bolsonaro compõe a série de calamidades políticas que atinge o país desde 2013.

Hoje, Otavio se empenharia na busca de um equilíbrio perfeito para a cobertura jornalística de um governo desastroso e vivamente empenhado em destruir o jornal que dirigiu por mais de três décadas.

Não são apenas reiterados ataques verbais. Bolsonaro cria embaraços para a circulação do jornal —ameaçando anunciantes, por exemplo. Aposta na destruição da reputação profissional de uma grande repórter e maneja a Lei de Segurança Nacional para enquadrar colunistas.

Outro presidente da República, Fernando Collor de Mello (1990-1992), tentou intimidar a Folha. A invasão do jornal pela Polícia Federal e a ação penal contra Otavio e outros jornalistas por crime de calúnia (que motivou a publicação da “Carta aberta ao sr. presidente da República”, em 25 de abril de 1991) não impediram a abertura de espaço para que Collor se defendesse, na Folha, das acusações que ameaçavam o seu mandato.

Em 2006, o então publisher da Folha, Octavio Frias de Oliveira, e seu filho mais velho, Otavio Frias Filho, diretor de Redação;
Em 2006, o então publisher da Folha, Octavio Frias de Oliveira, e seu filho mais velho, Otavio Frias Filho, diretor de Redação - João Wainer/Folhapress

Defensor radical da liberdade de expressão, provavelmente Otavio estaria dividido entre o reconhecimento da legitimidade da verbalização autoritária do bolsonarismo, a cobrança editorial de compromissos democráticos e de apuração de seus crimes e a crítica feroz a cada um dos retrocessos.

Otavio morreu muito cedo. Sua inteligência produziria reflexões inestimáveis sobre a invasão do Capitólio nos EUA, a pandemia, o isolamento, o “liberalismo individual” que se pratica contra o uso de máscara, as medidas sanitárias e a própria vacina.

Um episódio ilustra o perfil humanista de Otavio e revela como se ocupava, eventualmente, o diretor do mais influente jornal brasileiro.

Em 2001, Otavio recebeu carta do preso responsável pela biblioteca da Penitenciária de Presidente Bernardes, no interior de São Paulo, e, em um encontro em minha casa, sugeriu que cada um dos presentes indicasse 10 livros essenciais para a pessoa presa.

A entusiasmada carta de agradecimento que Otavio receberia semanas depois faz referência a cada uma das obras que doou a partir daquela gincana noturna: “Novo Aurélio – O Dicionário da Língua Portuguesa”, “Código Penal”, “Crime e Castigo” (Dostoiévski), “Memórias do Cárcere” (Graciliano Ramos), “A Vida como Ela É...” (Nelson Rodrigues) e “Antologia Poética” (Carlos Drummond de Andrade).

E ainda “O Processo” (Kafka), “Ensaios” (Ralph Waldo Emerson), “As Mil e Uma Noites” (versão de Antoine Galland) e um “Atlas Geográfico”, considerado útil pelo prisioneiro para saber “por onde o fim do mundo vai começar”.

No plano pessoal, Otavio estaria vivenciando dias de fascínio e paranoia, de desânimo e cansaço. Cumpriria as regras de isolamento. Aprenderia tudo o que fosse possível aprender sobre o vírus e suas variantes. Sentiria enorme saudade da boemia e do entorno teatral.

Assistiria, pela enésima vez, ao filme “Contágio” (direção de Steven Soderbergh, 2011) e acompanharia, como aficionado, a corrida ao planeta Marte: em julho, quando é menor a distância da Terra, os Emirados Árabes, a China e os EUA lançaram as sondas que, em fevereiro, chegaram ao planeta.

Em relação à Folha, celebraria o centenário com uma contida, porém indisfarçável, ponta de orgulho e alegria.

Em 1991, Otavio na Universidade Columbia, em Nova York, onde recebeu o prêmio Maria Moors Cabot
Em 1991, Otavio na Universidade Columbia, em Nova York, onde recebeu o prêmio Maria Moors Cabot - Graciela Magnoni

A trajetória de Otavio Frias Filho

  • 1957: Em 7 de junho, nasce Otavio Frias Filho, 1º filho de Octavio Frias de Oliveira e Dagmar de Arruda Camargo.
  • 1962: Frias de Oliveira (1912-2007) torna-se proprietário da Folha, em sociedade com Carlos Caldeira Filho e Caio de Alcântara Machado —este saiu do negócio meses depois.
  • 1975: Entra na Faculdade de Direito da USP e passa a frequentar diariamente o jornal, tornando-se assistente de Cláudio Abramo, então diretor de Redação.
  • 1980: Ingressa na pós-graduação em ciências sociais da USP.
  • 1983: Lidera a campanha do jornal pelas Diretas Já.
  • 1984: Torna-se diretor de Redação e implanta o Projeto Folha.
  • 1990: É processado pelo então presidente Fernando Collor.
  • 1991: Publica seu 1º livro, “Tutankáton”. É autor e coautor de mais de 10 livros, entre ensaios sobre cultura, peças teatrais, reportagens ensaísticas e obras infantojuvenis.
  • 1991: Recebe o prêmio Maria Moors Cabot de jornalismo, da Universidade Columbia (EUA).
  • 1992: Obtém vitória em processo movido por Collor. “Típico Romântico”, peça de sua autoria, é encenada em SP.
  • 1994: Torna-se colunista da página 2, onde publica textos semanalmente até 1999.
  • 2010: Torna-se pai pela 1ª vez, de Miranda, com a editora Fernanda Diamant. A 2ª filha deles, Emilia, nasce em 2017.
  • 2016: Passa a escrever mensalmente no caderno Ilustríssima.
  • 2018: É encenada adaptação de seu texto “O Terceiro Sinal”. Morre em 21 de agosto, em decorrência de câncer originado no pâncreas.
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