Elza Soares à Folha em 1997: 'Sou cantora djou: de outro mundo'

Cantora, morta na quinta-feira (20), retomava carreira após nove anos quando conversou com o jornal

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Em 1997, quando a Folha perguntou à Elza Soares sua idade, a cantora respondeu: "Tive várias encarnações, então não sei". Em algumas vidas teve sete anos, em outras 20, explicou. E, mesmo nesta vida não sabia, porque em alguns dias tinha 50 anos, em outros 100. Sua idade parecia pouco lhe importar, o fundamental era como se definia naquele dia: "Sou uma cantora 'djou': de outro mundo, entendeu?".

De outro mundo e de todos os tempos, como evidencia sua trajetória de seis décadas na música brasileira, em que marcou sucessivas gerações, explorou diversos ritmos e reinventou-se a cada sucesso ou revés. Eleita pela rádio BBC Londres a voz do milênio —rouca, rasgada e inconfundível —Elza Soares morreu na quinta-feira (20) aos 91 anos.

retrato colorido da cantora Elza Soares. ela está sentada de lado, apoiando-se no encosto de uma cadeira, posando para a foto
A cantora Elza Soares, no Rio de Janeiro, em 1997 - Antonio Duarte - 28.ago.1997/Folhapress

No final da década de 1990, quando concedeu entrevista ao repórter Pedro Alexandre Sanches, Elza lançava o álbum "Trajetória", estreando em um novo formato, o CD, e retomando sua carreira após anos afastada da música e do Brasil, em razão do luto por seu filho Garrinchinha, morto em 1986, aos 9 anos, três anos após a morte do pai, a estrela do futebol Mané Garrincha.

Quando a conversa com Sanches chega ao ex-marido, com quem Elza viveu por 17 anos, em um relacionamento no qual foi vítima de violência doméstica, a cantora rebate: "Ah, falar do Mané outra vez?". Queria falar apenas do lado bom. "Foi o grande amor da minha vida", afirma encerrando a questão.

Releia abaixo a íntegra da entrevista com Elza Soares, republicada agora como parte da série Entrevistas Históricas, que celebra os 100 anos da Folha ​e, neste caso, também todos os tempos de Elza.

Elza

2.set.1997

Nove anos sem gravar e morando mais no exterior que no Brasil, Elza Soares está de volta. "Trajetória", sua estreia em CD, devolve a cantora aos braços do Brasil e aos braços do samba.

Personagem de "Cantando para Não Enlouquecer", biografia escrita por José Louzeiro que será lançada no final do mês, Elza rememora, em disco e livro, trajetória marcada por tragédias pessoais e oscilação profissional.

Antes de se tornar cantora, passou fome, viveu em favela, casou aos 12 anos, teve cinco filhos, trabalhou em fábrica de sabão e hospício. Em 1962, no auge do sucesso, iniciou relação conturbada de 17 anos com o jogador de futebol Garrincha (1933-1983).

De carreira errática desde então, volta em disco que conta com sambas tradicionais, clássicos da MPB, baladas tristes e participação especial de Zeca Pagodinho.

"Eu sou uma cantora 'djou': de outro mundo, entendeu?", é como se define.

Esse é seu primeiro álbum lançado originalmente em CD. Por que a ausência tão longa?
Meu filho [Garrinchinha, morto em 1986, aos 9 anos] morreu, me descontrolei totalmente. Larguei tudo e fui embora para a América, completamente sozinha. Eu estava muito chata.

Fui para Paris, Roma. Até que disse: "Gente, vou voltar para o Brasil". Não acredito que exista alguém mais patriota que eu. Chego a ser nojenta. Olhava Paris, dizia: "Não parece o Brasil". Ia para Londres, Londres é cinzenta. Nova York: "Não gosto, não".

Posso perguntar sua idade?
Olha, pode perguntar que eu vou responder. Tive várias encarnações, então não sei. Já tive encarnação de 7 anos, de 20, tem dia que eu tenho 100, tem dia que tenho 50. [Segundo o biógrafo José Louzeiro, Elza nasceu em 1930]

Como você descobriu que ia ser cantora?
Com a lata d'água na cabeça. Pegava a lata e dava um gemido [emite som grave característico]. Já era "djou". Quando disse que ia ser cantora, foi um escândalo na família: "Tudo menos cantora!". Era como prostituição.

Casei e tive filho aos 12 anos, fiquei viúva aos 18, ele ficou tuberculoso. Matei um marido logo de cara, cantei para ele subir, ele subiu. Foi horrível. Fiquei com a filharada —nunca fui muito parideira, só pari nove —, como ia ganhar dinheiro? Cantando.

Como foi descoberta?
Por Moreira da Silva e Sylvinha Telles. Graças ao Moreira, fui cantar na boate Texas Bar. Uma noite estava lá cantando, e chega a Sylvinha. Cometi a maior gafe. Eu tinha um medo louco de gente, fazia cara de fera. Eu cantando, ela me olhando assim...

Pensei: "Meu Deus do céu, homem eu sei, mas mulher?". Ela disse: "Meu amor, quando acabar quer ir sentar à mesa comigo?".

Eu disse: "A senhora está muito enganada, o que pensa que eu sou?". E ela: "Menina, você é um bicho! Meu nome é Sylvinha Telles. Quero convidar você para gravar na Odeon". Falei: "Dona Sylvinha Telles!!! Deixa eu abraçar a senhora!".

Ela não tinha segundas intenções mesmo?
Não tinha. Também, se tivesse, eu não ia entender, era muito burrinha. Nem sabia o que era bicha, para mim era tudo homem. Depois fiquei amiga. Agora eu sou biba, não tem mais que eu.

Quando você conseguiu gravar?
Em 1960. Na época, saía para trabalhar às seis da tarde e era só porta e janela batendo na avenida. "Já vai ela, pois é...". Eu nem aí, a palavra "prostituta" é a mais linda que existe.

Gravei "Se Acaso Você Chegasse", e no dia seguinte estava no rádio, "a voz que veio para ficar". Voltei para casa de manhã, nenhuma janela bateu. Mas que falsidade, que hipocrisia, ô, mundo cão. Antes, meus filhos não tinham com quem brincar, eram filhos de uma prostituta. Depois...

Houve outras gafes?
Muitas. Vem um cara com um ramo de flores: "Trago rosas para outra rosa". Eu respondo: "Já começou errando. Meu nome não é Rosa, não gosto de rosas e não canto rosas". Ele disse: "Você canta minha música, eu gosto". Eu disse: "O senhor pede aí a sua música que eu canto". "'Se Acaso Você Chegasse', sou o autor, Lupicinio Rodrigues." Eu: "Seu Lupicinio!!! Ai, por que o senhor não falou antes?". Ele: "Como, minha filha? Você parecia que ia me morder".

E o Garrincha?
Ah, falar do Mané outra vez? Ele foi uma gracinha, quero falar só o lado bom. O Mané também tinha um lado muito bom. Foi o grande amor da minha vida.

Como define o novo CD?
É um novo início. É uma mulher com muita vida, depois de umas pedras que interromperam a trajetória. Mas eu dei a volta.

"O Meu Guri", de Chico Buarque, remete a seu filho?
Eu conheço esse guri, ele existe na minha vida. Tive um filho que perdi por causa de fome.

O trecho "não perca tempo assim contando história/ pra que forçar tanto a memória pra dizer/ que a triste hora do fim se faz notória/ continuar a trajetória é retroceder" é autobiográfico?
Isso é lindo demais. É muito verdade.

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