Rita Lee à Folha em 1978: 'Sou representante de muitas perguntas'

Cantora paulistana contou como foi sua prisão e falou sobre o disco "Refestança", com Gil

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Arquiteta da ponte que uniu o rock e a música popular brasileira na década de 1970, Rita Lee acabara de lançar um de seus discos de maior sucesso, "Babilônia", além de "Refestança", com Gilberto Gil, quando foi entrevistada pela Folha em 1978.

A conversa com a jornalista Maria da Paz foi de discos voadores ao gosto musical do general Ernesto Geisel, então presidente da República, passando por críticas ao movimento estudantil e aos jingles da Arena, então partido do governo, e do MDB, da oposição.

Rita Lee, com franja e cabelos ruivos e lisos, sentada ao piano com sua jaguatirica no colo.
A cantora Rita Lee em sua casa, em 1976, em retrato feito por Bob Wolfenson - Bob Wolfenson -1976

"Não posso ter posição", disse porque, mutante que é, muda "todos os dias". A cantora paulistana, já ex-integrante dos Mutantes à época da entrevista, também falou de sua prisão, um episódio de perseguição da ditadura militar. Ela estava grávida e ficou um ano em prisão domiciliar por porte de maconha, que, afirma, não era sua.

As gírias típicas dos anos 1970, como "se pichar" e o versátil "transar" (sem conotação sexual) percorrem todo o diálogo entre as duas, que, pela pluralidade de assuntos e a sinceridade característica de Rita Lee, termina por encapsular o espírito daquela época.

Hoje, aos 73 anos, a vovó roqueira escreve livros infantis e é ativista em defesa dos animais, a única bandeira que carrega. No MIS (Museu da Imagem e do Som), em São Paulo, a exposição “Samsung Rock Exhibition - Rita Lee, em cartaz até novembro, celebra sua carreira com fotos, figurinos e instalações que rememoram as muitas fases da cantora.

Apesar do "filme de horror que está acontecendo no mundo", como disse à Folha em 2020, a Rita Lee de 1978 garante: "Não existe nenhuma guerra que não deixe lugar para a festa."

Veja os principais trechos da introdução e da entrevista.

Barbárie e Artíficio

Maria da Paz

Rita Lee gosta de cantar, dançar, não sabe se rock ou música popular. Prefere não ter partido nem religião. Diz que é muito tímida, que gosta do palco como uma espécie de terapia.

Mas também curte ficar em sua casa do Pacaembu [bairro de São Paulo] com o marido, o filho de um ano e meio, a mãe e algumas empregadas.

Rita é simples, engraçada, grilada com fotografia. É uma pessoa acessível para os garotos de 15 a 16 anos, office-boys ou estudantes, que disputam as coisas que joga na plateia no fim dos shows. Mas ela aprende muito com eles e acredita que um dia será daquelas velhas briguentinhas, que apontam a bengala para falar, chatas mesmo.

Você é considerada uma alienada...
É... por que, hein, você sabe?

Porque você não toma posições políticas.
Ah, isso faço questão, vai ver que até é uma posição. Essas coisas que me cobram têm muito a ver com o público com quem eu mexo, atinjo um número de pessoas grande... Então eu deveria ter uma certa responsabilidade perante o horror. Aí me picham [falam mal] e eu não ligo não, estou muito preocupada em fazer uma política de boa vizinhança e transar [se divertir] com a criançada.

Como é essa política de boa vizinhança?
É tentar, ao máximo possível, estar perto das crianças, do que elas pensam e sentem. Na fantasia delas, há uma lucidez incrível, elas sugerem coisas, são despreocupadas, tudo passa. Não posso ter posição, mudo de ideia todos os dias.

No mínimo, há coisas com as quais você concorda e outras de que discorda.
Olha, eu pego o jornal, leio a parte de política e acho tudo muito deturpado, eles estão usando armas completamente velhas. Tem também os estudantes, é um barato, eles querem participar, mas ficam sempre na velha passeata. Aquele negócio sério, pesado, quando tudo funciona melhor de uma maneira mais carnavalesca.

estandarte de carnaval com o rosto de rita lee
Foto do bloco de carnaval Ritaleena, que acontece anualmente em São Paulo - Rafael Roncato - 10.fev.2018/UOL

Se fizerem uma passeata mais colorida eu até entro... Fica muito aquela história de empunhar bandeira.

E você muda todo o dia com relação a quê?
Não sei, depende do humor, de tudo. Tem dias que gosto de comer verdura, outros, de muita carne. Não posso ser macrobiótica nem vegetariana, apesar de achar incrível. Como o que me dão, isso é um exemplo em termos de alimentação.

Sou assim em relação a tudo e acho que ganho com isso.

O quê?
Informação, conhecimento, experiência. Não consigo seguir uma religião só, me aprofundar muito... Fica chato, cansativo. Não dá pra ser especialista.

Você faz música.
É, mexo com uma coisa só, mas não fico estudando, me aprofundando, quando pego o violão é porque quero fazer uma música. Gostaria muito de não ter preguiça de estudar. Mas sou assim, vou fazendo, vivendo, tudo é imediato.

Acho que as pessoas que gostam de mim entendem esse lado: subo no palco não como líder, como modelo, como artista. Sou representante de uma porção de perguntas, respostas, dúvidas. Eles não estão lá para escutar nenhuma verdade que eu tenho para dizer, não há mensagem, apenas procuro ficar junto com eles.

De repente, meu trabalho está ficando mais acessível, popular, mais comercial no bom sentido. Popularidade pra mim é atingir o maior número de pessoas. E cheguei a conclusão que estou no meio da Babilônia.

O que é a Babilônia?
É este mundo, o planeta. Não consigo nem me sentir como brasileira, sou um ser do planeta.

Está tudo uma Babilônia, mas sempre em clima de festa, não existe nenhuma guerra que não deixe lugar para a festa.

Todo mundo tem sua música, até o [Ernesto] Geisel.
E a dele deve ser política, aquela coisa marcial.

Como você transa [lida com] o meio musical, amigos e inimigos?
Tem um pessoal radical da música popular que me considera oposição.

Oposição do quê? Da esquerda?
Isso não sei, gosto mais da palavra oposição. A oposição é sempre melhor, é aquela coisa: por que não? Mas esse pessoal que me picha muito acha que devo ficar mais ligada em direitos autorais.

Sei que músico vive de direito autorais, eu vivo disso, só que é muito chato cobrar centavo por centavo, conferir se está certo. Sabe, estou cansada de saber que estou sento roubada, que vou ficar chovendo no molhado. Essa relação já está babilonizada e não é do meu ramo mexer nisso.

Não seria uma luta coletiva?
Seria, gostaria muito que eles chegassem e explicassem pra mim... Quem sabe até faria um comício à minha maneira. Acontece que existe uma posição muito radical da parte deles: "Rita Lee não é brasileira, não faz música brasileira, não gosta do Brasil". Eles botaram uma série de coisas na cabeça e eu acabei ficando isolada. Melhor: me isolei porque não sou bem recebida.

Você já tentou falar com esse grupo?
Já, em julho do ano passado. Confessei que não sabia de nada, queria que me explicassem. Acharam um absuuuurdo, onde já se viu não saber como funciona essa transa de direitos autorais??? Ficaram furiosos, não disseram nada e eu me mandei, frustrada na minha tentativa de contatos imediatos.

E você ficou parecendo ainda mais alienada, mais babaca...
Não, esse negócio tá diminuindo nos últimos tempos.

Você sente assim?
Sinto, alguns continuam.

A esquerda?
A esquerda e a direita para mim são deputados. Quem está no meio é outra coisa, eu estou no meio.

O que é isso?
Estar em todas e não ser de nenhuma. Fazer um pouquinho de tudo, escutar o papo de todos e ficar com o que interessa.

Para mim quem está no meio é a social-democracia.
É mesmo? Veja só... Então, até no meio já tem rótulo... E acima, já tem alguém?

Só Deus.
Então Deus é brasileiro? Não sou feminista, mas que Deus é brasileiro é. Mas agora vamos tirar esse meio, desliga, desliga. Ora, não estava sabendo que o meio já tinha um nome... Porque é o seguinte, eu decido: agora vou escutar a propaganda eleitoral da Arena.

Você consegue?
Consigo... Depois escuto o MDB, tem uma musiquinha mais prafrentex [moderna, descolada], que é horrenda também.

Você vai votar?
Eu tenho título de eleitor, já perdi umas seis vezes, mas estou com um na mão. Vou votar num cara gordo, enorme —parece um Buda que aparece em tudo quanto é jogo de futebol.

De que partido?
MDB.

Votando você é MDB?
Não sei, escuto o que eles dizem, depende.

Tanto faz Arena e MDB?
Claro que o MDB tem uma coisa que faz mais sentido. Não votaria na Arena porque os candidatos são muito caretas. Sei lá, na campanha dá para ver quem é mais chegado numa de povo e, de repente, calhou do MDB reunir os melhor candidatos.

Você tem essa opinião por que não acredita nos caras ou por que acha que não é esse o caminho?
Esse caminho não adianta nada.

E qual é o caminho?
Unificar o planeta.

mulher branca e jovem muito magra sentada em mureta sorrindo
Rita Lee no Rio de Janeiro em 1975 - José Santos - 14.jul.1975/Agência O Globo

Faz um plano.
A Scarlet Moon [jornalista e escritora, casada com Lulu Santos na época; morreu em 2013] já lançou a minha candidatura à presidência da República...

Fantástico. Qual será tua primeira medida?
Bom, primeiro preciso me afastar um pouco, quem sabe em Natal, no Rio Grande do Norte...

Não, você precisa ver o que está faltando.
Está faltando festa. Mas espera aí, sou presidente só do Brasil? Eu gostaria de ser presidente do planeta, quero um trono mundial.

Você precisa conquistar primeiro aqui.
Nesse caso acho melhor me comportar como uma primeira-dama... A política precisa ser feita com a criançada, não no sentido de educá-los para certas coisas, mas de favorecê-los para que resolvam os problemas. Em termos de música, eles não querem saber do que já foi feito, estão ligados no presente, querem o divertimento.

Olha, eu estou indo para Natal... Lá tudo é mais fácil, as pessoas pescam. Existe uma propaganda muito grande na cabeça de todo mundo para ganhar dinheiro, fazer poupança, comprar televisão. Enfim, para você ser um produto civilizado. Acho que não, não é nada disso, quanto mais a gente se conhece mais a revolução está acontecendo: você sabe seus limites, o que precisa, descobre mais os outros. A revolução é de cada um para si: conhecer, gostar, saber que é feio, bonito.

Você está propondo a famosa volta às origens?
Só para entrar num lance mais seguro, as pessoas estão numa errada. O cara que está no Nordeste, por exemplo, metaram na cabeça dele que bom é ter televisão e ele vem para São Paulo com oito filhos e fica numa pior.

Para onde você acha que a gente vai?
Do jeito que tudo anda, brevemente teremos que sair deste planeta. É uma pena, este planeta é demais… Era um paraíso, mas os anjos se rebelaram e começou esta brigalhada toda.

Quem está brigando com quem?
Não sei, tem tanta briga… Tem o velho com o novo... Política é uma loucura. Deviam levar em consideração a experiência dos velhos, como uma espécie de consulta, de biblioteca… Não isso dos velhos ficarem moralistas achando a juventude qualquer coisa. O poder do mundo está nas mãos de gente muito velha, o papa não me deixa mentir. Todos os presidentes são sérios, todos foram criados achando que a velhice representa não sei o quê. E velho é a mesma coisa que criança. Olha, o jeito que transam [tratam] a política tem muito a ver com a morte.

Como você vê a morte?
Como uma outra vida, muito melhor que esta. Aqui mesmo ou em outro lugar, mas mais perfeita.

Então já tem um montão de gente por aí que não estamos vendo?
Ah sim, neste espaço mesmo, nesta sala. E estão gostando muito da conversa, tem a ver diretamente com eles. Eu acredito em tudo.

Você já viu disco voador?
Já, quando tinha sete anos, na Vila Mariana. Eu estava num terraço e pintou um lance no céu… Sabe, um beija-flor? Fazia piruetas desse jeito, era um objeto metálico fazendo acrobacias no céu. Fiquei olhando mas não fiquei espantada… Era dia, o reflexo do sol batia nele… E havia um zumbido que tomava conta de tudo, chegava na minha cabeça. Só mais tarde percebi o que era… Estou perseguindo até hoje, mas sóbria nunca vi.

Você não assumiu o fumo quando foi presa?
Não podia assumir, não tinha nada. Estava afim de curtir a gravidez à flor da pele, não precisava de droga nenhuma. E foi esquisito: os caras estavam querendo uma promoção, subir de posto e o tiro saiu pela culatra… Revistaram a casa e não encontraram nada. Fiquei 15 dias na cadeia, e mais um ano presa. Engraçado, vendo disco pra burro, nunca tinha vendido tanto. Recebi cartas, milhares e milhares, não havia uma única acreditando no jogo deles. Todos diziam que eu tinha sido alvo de um escândalo.

Não era uma posição moralista?
Não.

No sentido dos mais não quererem aceitar que você pudesse por acaso fumar maconha?
Não, era para dar força. As mães escreviam se solidarizando com o nenê, diziam sempre: estamos com você apesar de tudo, não sei se você fumou ou não…

E como você sente a moral, os rótulos?
É um saco. Outro dia, no teatro Bandeirantes, apareceu uma repórter: 'como você concorda com essa coisa de discoteca, um negócio estrangeiro na vida do Brasil, que tira o lugar da música nacional???'

Certo, só não posso ficar me preocupando com esse tipo de coisa, fazendo campanhas…. Eu não consigo levar nada a sério, até gostaria, mas não dá. O que tenho contra a discoteca? Nada, adoro discoteca, aliás é tão leve, não existe esse peso de tirar o lugar da música brasileira.

capa de disco com gil e rita cantando ao microfone
Capa do disco "Refestança", de Gilberto Gil e Rita Lee - Reprodução - 4.fev.1998

Na Refestança também pintou esse papo político, volta e meia o Gil é considerado música popular e eu roqueira. Quando nos juntamos, esses dois grupos —chatíssimos— ficaram desorientados, queriam entender a nossa mensagem.

Gil e eu rimos tanto. Ora, não temos mensagem, um gosta do outro, imaginamos que seria um barato tocarmos juntos. E eles insistiam: mas qual foi a intenção, digamos assim, social, culturallllll… Talvez o Gil está unindo o rock com as raízes do trio elétrico? Ah, era pura diversão…

Qual a média de idade do pessoal que você atinge?
Até “Fruto Proibido” [disco de 1975], eram cabeludos, roqueiros, agora é mais criança. De 14 para baixo.

Você prefere curtir uma popular?
Ah sim, detesto o high society, acho um horror. Mais terrível ainda são as pessoas que querem chegar lá…A Fafá de Belém, por exemplo. Não sou classe A, ir ao cabeleireiro para pintar o cabelo já é um sacrifício.

De que cor é teu cabelo?
Castanho. Pinto faz muito tempo porque tenho cabelo branco demais.

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