'A cultura do silenciamento é tão dolorosa quanto o estupro'

De origem indígena, Jennyffer Bransfor, 38, aderiu ao levante virtual #AgoraVcSabe para denunciar violências sexuais sofridas na infância

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Jennyffer Bransfor decidiu tornar pública a violência sexual sofrida na infância para denunciar a situação entre meninas indígenas

Jennyffer Bransfor decidiu tornar pública a violência sexual sofrida na infância para denunciar a situação entre meninas indígenas Karime Xavier / Folhapress

Ivy Farias
São Paulo

Há três anos, Jennyffer Bransfor, 38, mudou-se de Itabuna (BA) para São Paulo, após ficar viúva. Mãe de três filhas, de 18, 17 e 6 anos, ela busca na capital paulista um recomeço de vida.

De origem indígena, ela nasceu na região que viria a ser reconhecida como território oficial dos Tupinambás de Olivença (BA) em 2009.

Foi babá, faxineira e manicure até poder investir em cursos e equipamentos para trabalhar pela internet vendendo produtos diversos.

Jennyffer Bransfor decidiu tornar pública a violência sexual sofrida na infância para denunciar a situação entre meninas indígenas
Jennyffer Bransfor decidiu tornar pública a violência sexual sofrida na infância para denunciar a situação entre meninas indígenas - Karime Xavier / Folhapress

Cursou até o primeiro ano do ensino médio e passou a ser sócia da filha mais velha em um negócio informal de marketing digital, com foco no resgate de sua ancestralidade, a começar pela adoção também de um nome indígena:

Com a filha, fez o perfil da mãe, Yakuy Guarani Kaiowá Tupinambá, que voltou a morar na aldeia, e também da cacique Valdelice (@jamopotytubnamba).

Foi pela internet também que decidiu participar do levante virtual #AgoraVcSabe, como forma de denunciar as múltiplas violências sexuais sofridas na infância e adolescência, sobretudo entre indígenas, como o caso recente da menina Yanomami de 12 anos que teria sido estuprada e assassinada por garimpeiros em uma aldeia em Roraima.

"O estupro infantil é uma coisa muito perversa porque abre outras portas para que se perpetuem. Fui estuprada pelo meu padrasto dos três aos 11 anos. Parece inacreditável, mas é como se ficasse um sinal invisível de que outros podem fazer o mesmo.

Aos 14 anos entrei em uma rede de exploração sexual. Eram juízes, deputados, empresários que sabiam da minha história e da minha situação de vulnerabilidade e se apropriaram disso para oferecer uma troca, uma vantagem.

Quando se tem 14 anos, você não faz ideia de que aquilo é sexo e deve ser consentido. Mas o estuprador, aquele homem que tem 35, 40 anos, ele sabe que é errado manter relações sexuais com uma menina. Eles eram adultos.

Quem tem mais condições de entender? Eu achava que havia nascido para isso, para ser estuprada e não ter valor. Era como se fosse um objeto para dar prazer para o outro porque o estupro foi naturalizado na minha história de vida.

Só consegui saber que era uma vítima quando vi outras. Até então, achava que meu caso era isolado. Quando falo sobre a minha experiência e quando escuto sobre a de outras meninas, vejo que o padrão se repete.

Não foi uma falta de sorte minha um predador me desejar aos três anos de idade. A sociedade sabe que isso acontece e, ao não falar, está dizendo para os estupradores: ‘Tá tudo certo com o que você está fazendo, continue’.

A cultura do silenciamento é tão dolorosa quanto o estupro. E quando se é criança é ainda pior. Te deslegitimam com a falsa ideia de que criança não tem discernimento, que inventa.

Jennyffer Bransfor diz que a cultura do silenciamento é tão dolorosa quanto o estupro
Jennyffer Bransfor diz que a cultura do silenciamento é tão dolorosa quanto o estupro - Karime Xavier / Folhapress

A palavra é esta mesma: estupro. A vítima será sempre vítima, seja ela uma criança ou um adulto. Sim, isso é um crime. E há diferença quando se escuta que ‘fulano mexia com a neta’ ou ‘beltrano abusou da enteada’. Mexer é uma coisa, abusar é outra. O que eles fizeram comigo foi estupro.

Não é fácil entender o que significam essas palavras numa sociedade que usa meias palavras. É uma situação tão invisível que faz você se sentir isolada e sem ter a real noção do que aconteceu.

É libertador entender que sim, você é uma vítima. E aqui é importante também falar sobre outra palavra, o verbo ser. Você não foi vítima, você é vítima para sempre porque aquela dor de reclamar ‘Painho, está doendo’ é permanente e sinto até hoje de uma forma cruel.

Quando a gente começa a entender que não era coisa da nossa cabeça, que aquela mão na sua genitália, aquele gesto, aquilo de fato aconteceu. Por isso, quando uso a minha voz no levante virtual #AgoraVcSabe, entendo que fui vítima e a culpa não foi minha.

Essa campanha é libertadora e necessária porque as histórias se repetem e a gente se sente culpada uma vida toda com o silêncio dos adultos.

Porque todo mundo do seu entorno sabia. Mas como é naturalizado pela sociedade, isso dificulta a denúncia. É muito ruim passar a vida toda se perguntando o que eu fiz de errado. O que eu fiz para esse predador me olhar e me desejar?

O papel de vítima é libertador e transformador e só é possível quando a gente fala em público. Porque não é sobre falar e sim sobre ser ouvida.

Na cidade do interior da Bahia, onde nasci, era o famoso o que ‘as pessoas vão pensar’. Todo mundo sabia que aquele avô 'mexia' na neta mas ninguém falava nada. Afinal, o que os vizinhos iriam dizer?

O que eu fiz para esse predador me olhar e me desejar?

Jennyffer Bransfor

Vítima de violência sexual na infância

Na maioria dos casos, a vítima sai de casa para que o estuprador possa permanecer. É normalizado expulsar a criança. Ela é revitimizada ao longo de toda a vida.

Eu saí de casa sabendo que não tinha feito nada de errado. Só eu sei o quanto isso doeu. O quanto ainda dói e sempre irá doer.

A primeira vez que falei com a minha mãe sobre isso foi há uma semana em um grupo de conversa sobre estupro infantil. Eu entendo que ela também foi violentada psicologicamente.

Toda a família sofre com o estupro infantil. Meu irmão se suicidou aos 33 anos ao saber que a filha dele também foi estuprada aos cinco. Lembro dele gritando, desesperado, que não pôde fazer nada.

A minha irmã mais velha tem um quadro depressivo agressivo por se sentir culpada por não ter me ajudado. A família se desestrutura, se rompe.

Hoje sou uma mulher que tenta se recompor todos os dias com o letramento, o estudo.

Minha família é indígena, somos Tupinambá de Olivença, e foi justamente com o entendimento da violência naturalizada contra crianças indígenas que me dei conta: sou uma vítima que sobreviveu, pois a maioria é assassinada brutalmente.

Veja o que aconteceu com a menina Yanomami de 12 anos. Ela não é exceção: na maioria dos casos, os estupradores também queimam as vítimas, cortam os braços, mutilam, assassinam com crueldade.

O apagamento das minhas raízes foi algo que dificultou a compreensão de que estou inserida em um contexto muito maior e mais perverso da naturalização da violência contra as pessoas indígenas.

Até onde sei, só na minha família, o ciclo vicioso se estendeu em três gerações. Minha mãe, eu e minha sobrinha fomos vítimas.

No meu caso, o conhecimento sobre a dinâmica familiar e social contra as pessoas indígenas foi libertador. Reconhecer isso é fundamental porque, sem reconhecimento, não há como ter dignidade.

Sem ela, não dá para escrever essa história que precisa tanto ser contada para que nunca mais se repita."

A causa de Combate à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes tem o apoio do Instituto Liberta, parceiro da plataforma Social+.

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