Costureiras bolivianas se livram de exploração e criam coleção própria no Brasil

Coletivo Sartasiñani oferece autonomia e renda a mulheres que não conheciam idioma ou direitos e trabalhavam por mais de 12h em ambientes lúgubres

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São Paulo

Costurar por 12 horas seguidas em um espaço escuro e mal ventilado e terminar o mês sem dinheiro não é mais a rotina de um coletivo de bolivianas que moram em São Paulo. As costureiras se uniram para tocar a própria confecção e dar um basta à exploração do seu trabalho.

Sonhos diferentes motivaram a saída da Bolívia, como ajudar a família em dificuldades, poupar dinheiro para estudar, ter uma casa própria e uma vida melhor.

Mas obstáculos iguais recepcionaram as migrantes no Brasil: falta de familiaridade com o idioma, informalidade no trabalho, longas jornadas e baixa remuneração.

três mulheres bolivianas
Anahi Chuquimia, Maria Isabel Gutierrez e Rebeca Huchani são integrantes do Coletivo Sartasiñani, que lançou uma coleção inspirada nos povos andinos - Divulgação

"Estranhei o sistema de trabalho, me vi explorada, e éramos livres na Bolívia", diz Nancy Guarachi, 47, coordenadora do coletivo Sartasiñani.

A costureira chegou ao Brasil em 2009 fugindo de episódios de violência doméstica. Ainda na terra natal, fez denúncias e conseguiu medida protetiva contra o agressor, mas não se sentiu segura.

"Deixei tudo lá: um bom trabalho na área de pesquisa, minha casa, cachorro e gato. Saí com duas mochilas e uma criança para um país que só conhecia pelas novelas", afirma.

Nancy foi aprender a costurar e trabalhar no Bom Retiro, bairro tradicional pelo comércio de roupas e tecidos. Morava na oficina de costura, onde a jornada iniciava às 7h. O jantar era servido às 22h.

"Fiquei quatro meses sem sair porque não tinha dinheiro para nada", conta Nancy.

A lembrança boa foi ter conseguido matricular o filho, de 7 anos, em uma escola pública, com apoio do dono da oficina. Mas ele logo sugeriu que o menino ajudasse a mãe em seu ofício. "Não aceitei e saí de lá", diz ela.

 Nancy Guarachi, coordenadora do coletivo Sartasiñani, formado por costureiras bolivianas que moram em São Paulo
Nancy Guarachi, coordenadora do coletivo Sartasiñani, formado por costureiras bolivianas que moram em São Paulo - Arquivo pessoal

Em outra oficina, passou a ser remunerada por peça de roupa costurada. Conseguiu alugar dois cômodos com os rendimentos, mas o dinheiro a mais exigia uma jornada exaustiva de trabalho.

Com o português ruim —"fui procurar trabalho na Barra Funda e disseram que eu era analfabeta"—, Nancy resolveu comprar uma máquina e trabalhar por conta própria.

A primeira experiência foi traumática. "Fiz 50 jalecos de motoboy e não me pagaram, atrasei aluguel e uma vizinha brasileira ajudou a acalmar o locatário", conta Nancy.

Em 2012, a costureira conseguiu se inscrever em um curso de línguas e em outro de negócios na Aliança Empreendedora. Aprendeu a falar português e a precificar suas peças.

No mesmo ano, ingressou em um grupo de mulheres do Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (Cami). Encontrou outras bolivianas, muitas mães solo, que buscavam conhecer seus direitos no novo país e que aprendiam sobre regularização migratória e leis trabalhistas. Também tinham aulas de confecção e modelagem.

Foi desse grupo que surgiu o coletivo Sartasiñani. "Significa ‘levantemo-nos!’ e é algo que minha mãe sempre dizia", afirma Nancy Guarachi sobre a palavra de origem aymara –etnia a qual ela pertence.

Nove pessoas integram a confecção, que nasceu no bairro da Casa Verde Alta e funciona em home office, sem intermediários.

"O coletivo é exemplo para outros grupos de costureiras ao reunir mulheres guerreiras que enfrentaram situações adversas para conquistar espaço próprio que lhes possibilitou transformar suas vidas", diz Nina Braga, conselheira do Instituto-E.

Em outubro deste ano, o Sartasiñani lançou sua primeira coleção de roupas inspiradas na cultura ancestral andina.

A "Latinossomos", co-criada com a escola de moda intercultural Ewa Poranga, tem estampas que carregam o colorido característico dos povos andinos. São roupas que podem ser usadas por homens e mulheres.

"As peças são de alto nível e contam um pouco da história de vida de cada uma das costureiras", afirma Sergio Miletto, presidente da seção brasileira da Alampyme - Associação Latino-Americana de Micro, Pequena e Média Empresa, uma das apoiadoras do coletivo.

"Uma demonstração de que é possível transformar saberes e fazeres populares e tradicionais em ativo econômico", completa Miletto, que ajudou na coordenação do grupo.

O Sartasiñani já caminha com as próprias pernas, mas Nancy aponta dois grandes desafios para 2023: recursos para investir em novos produtos e domínio da escrita em português para buscar parcerias.

Ainda assim, não ter o trabalho explorado, ter liberdade e poder sonhar com uma casa comprada no Brasil valem o esforço.

"É muita responsabilidade e é trabalhoso, mas ficamos orgulhosas por colocar preços em nossas peças, pois sabemos que ainda há pessoas com as mesmas histórias, no mesmo sistema de exploração", diz Nancy Guarachi.

"Aqui as mulheres são empoderadas, não trabalham por preço baixo e sabem negociar."

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