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'Não é sustentável viver na bolha', diz fundadora de banco de alimentos pioneiro

ONG que ajuda a combater desperdício completa 25 anos e cria modelo de franquias sociais para replicar metodologia

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São Paulo

Há 25 anos, a economista Luciana Chinaglia Quintão vem tentando convencer empresários do setor de alimentação a não jogarem comida no lixo. No Brasil em que 33 milhões passam fome, ela e sua equipe salvam do desperdício toneladas de alimentos perfeitos para o consumo, direcionando-os para quem precisa deles.

A ONG Banco de Alimentos (OBA), fundada por Luciana em 1998, recolhe excedentes da produção no campo, na indústria e no comércio e os entrega a entidades sociais. Essa "colheita urbana" já beneficiou, desde então, 1,4 milhão de pessoas com 18,5 milhões de quilos de alimentos —produtos que perdem o valor de prateleira por terem imperfeições na aparência ou por estarem próximos da data de vencimento.

O carregamento vai para 57 entidades, que atendem 25 mil pessoas por mês —de crianças órfãs a moradores de rua. A ONG também atua em situações emergenciais, distribuindo vale-alimentação para populações atingidas por calamidades.

Luciana Quintão, fundadora da ONG Banco de Alimentos (OBA), dentro de um dos supermercados onde é feita a 'coleta urbana' - Bruno Santos/Folhapress

Se hoje a lista de doadores inclui indústrias multinacionais, grandes redes de supermercados e restaurantes, no início Luciana encontrou quase todas as portas fechadas. Uma vez, enviou 400 cartas para empresas, mas não conseguiu nenhuma adesão.

Um dos obstáculos era a falta de leis de apoio ao doador de alimentos, que, a rigor, poderia ser processado caso um receptor adoecesse em função de contaminação. Ela, então, passou a se responsabilizar pelo conteúdo da doação, distribuindo recibos atestando o bom estado dos produtos, após a avaliação de nutricionistas.

Em 2020, foi aprovada uma lei que autoriza a doação de alimentos e só responsabiliza os estabelecimentos por danos causados pela comida se agirem com dolo. Ainda assim, há muito desconhecimento sobre o tema, além da resistência de empresários que não querem "ter o trabalho" de reduzir o desperdício em seus empreendimentos.

Além da colheita urbana, a OBA tem projetos de educação nutricional e conscientização sobre fome e desperdício.

A metodologia da organização, moldada a partir dos desafios operacionais, logísticos e jurídicos enfrentados ao longo dos anos, serviu de inspiração para outros bancos criados depois e agora poderá ser replicada em um modelo de franquia social. A ideia é transferir conhecimento e treinar franqueados que queiram implementar essa tecnologia social em outras regiões do país.

A piora recente da situação de insegurança alimentar no Brasil não desencoraja Luciana, que defende políticas mais abrangentes para combater a fome de forma duradoura. "Não sou pessimista, procuro ser uma pessoa realista que tem muita esperança, porque eu acho que saída tem", afirma.

Você lida com a causa da segurança alimentar há 25 anos. Por que, após uma evolução que nos tirou do Mapa da Fome, retrocedemos tanto? É uma pergunta difícil de responder, até porque a gente nem tem todas as respostas. O que eu posso dizer é que a saída do Brasil do Mapa da Fome muito se deveu a programas de transferência de renda. Houve uma redução da insegurança alimentar grave, mas a insegurança alimentar leve e moderada não foram resolvidas.

Os bancos de alimentos são importantes para o combate ao desperdício e à fome, mas a fome, na sua origem, deve ser combatida de outras formas. Eu cito bastante o exemplo da Finlândia, um país que passou fome em 1960, até que o governo resolveu investir em educação e isso mudou tudo.

Por que todo brasileiro deveria se importar com isso? Porque diz muito sobre quem somos como sociedade. A gente tem uma extrema abundância na produção de alimentos e tanta gente passando fome. Temos que ser educados desde cedo a não aceitar isso, a pensar no bem comum.

Foi por isso que vocês começaram a realizar ações em escolas? Fizemos uma plataforma com ideias para professores levarem o tema da fome para a sala de aula. O melhor é pegar a criança em formação, depois que cresce é mais difícil de transformar. Queremos que os futuros economistas, políticos, administradores tenham vontade de fazer diferente.

Queremos falar para o Brasil que não passa fome que não fazer nada é compactuar com isso. Tem tanta gente que não sabe o que acontece ao seu redor. É mais confortável viver na bolha, mas não é sustentável viver na bolha.

Como convenceu as empresas a doarem alimentos no começo? Ninguém queria doar comida 25 anos atrás. Eu batia na porta das pessoas e elas diziam: não pode, vou ser preso. De fato, não existia uma proteção para quem doasse, mas, a não ser que alguém entregasse um monte de comida contaminada, ninguém ia ser preso.

Para apaziguar o coração de quem estivesse disponível a doar, eu peguei para mim a responsabilidade. Entrego a ele um recibo de que recebi aquela quantidade de alimentos perfeitos para o consumo e a instituição também assina um documento quando recebe.

Como garantem que o alimento é seguro? Temos uma expertise, uma tecnologia social que é um reloginho, com compliance, auditoria externa. Nunca tive problema nenhum.

Os motoristas são treinados sobre o que podem pegar ou não e podem consultar nossa nutricionista em caso de dúvida. Hoje mesmo a gente deixou de recolher 400 quilos de batata porque estavam lotadas de brotinhos. Às vezes o doador fica ofendido, mas não tem como aceitar. Um banco de alimentos é muita responsabilidade.

A lei que traz mais segurança para quem doa alimentos foi promulgada em 2020. Isso mudou algo? Sempre achei muita hipocrisia não poder doar alimentos no Brasil, porque o governo sabia que muitas pessoas pegam comida no lixo, ficando sujeitas a um monte de doenças. Mas agora não tem mais desculpa para não doar. Ninguém mais pode ser preso porque doou comida, que é o que ficava no imaginário coletivo.

Os empresários estão mais conscientes? A maioria ainda não. Muitos acham que ‘dá muito trabalho’.

O desperdício de alimentos é uma das causas da fome? O desperdício não é a causa da fome, mas pode amenizar a fome. Se temos recursos escassos, o último lugar onde o alimento tem que parar é no lixo. Ele pode nutrir pessoas, animais, gerar energia, compostagem.

O desperdício é uma falta de inteligência tremenda. E não é indolor: se o desperdício de alimentos fosse um país, seria o terceiro maior emissor de gases de efeito estufa. Olha o que está acontecendo com as mudanças climáticas, os peixes morrendo na Amazônia, as inundações no Rio Grande do Sul.

Como passaram pela pandemia? Foi um período muito duro. Eu trabalhava 14, 16 horas por dia, recebia no meu celular muitos pedidos de pessoas desesperadas porque não tinha comida em casa. É pesado, é difícil manter a esperança.

Não sou pessimista, procuro ser uma pessoa realista que tem muita esperança, porque eu acho que saída tem. O que que nos falta? Inteligência social. Os políticos, os grandes empresários, têm nas mãos um enorme poder realizador. E acho que pela primeira vez eles realmente acordaram para essa situação.

Quais são os planos do Banco de Alimentos para o futuro? A gente adoraria ensinar outras pessoas a abrirem mais bancos de alimentos. Estamos aqui para quem quiser saber mais. Não queremos ser os únicos, nunca quis isso.

Nunca imaginei que a OBA chegaria a 25 anos. Comecei com uma Kombi e agora já chegamos a 43 municípios, doamos quase 19 milhões de quilos de comida. É muita coisa. Não sei onde eu vou chegar e isso não importa tanto. Importa onde a humanidade vai chegar.

A causa 'Fome de quê? Soluções que inspiram' conta com o apoio da VR e da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais.

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