Novo e polêmico modelo socioeducativo para jovens avança em Minas

Governo mineiro defende novos centros para desativar unidades precárias em meio à queda de 50% na ocupação; leilão em abril prevê investimento de R$ 860 milhões em 30 anos

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São Paulo

Dois centros para adolescentes cumprirem medidas socioeducativas, em modelo inédito de gestão privada no país, vão sair do papel neste ano em Minas Gerais.

Idealizado no governo Bolsonaro (2018-2022), que não fez levantamento nacional das vagas do socioeducativo, o projeto coincide com queda brusca no número de jovens em medidas de restrição e privação de liberdade.

O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) anunciou em dezembro, após seis anos sem dados, que caíram pela metade os adolescentes em regime fechado no país. São 11.556 internos em 2023 contra 24.803 em 2017.

fachada de prédio sobre gramado e com céu azul
Perspectiva do novo socioeducativo em Betim (MG), em modelo de gestão privada, para cuidar de menores infratores - Reprodução Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais

Retrato antecipado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que indicou queda desde 2016. Em 2019, onze estados tinham superlotação, entre eles MG, com 110% da capacidade.

"É um fenômeno inédito e generalizado", diz Betina Barros, ex-pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. "Há hipóteses como a queda de roubos na pandemia, a proibição da superlotação no socioeducativo em 2020, a rede de proteção de organizações criminosas e a atuação da polícia."

É nesse cenário que a parceria público-privada (PPP) do governo Zema (Novo), batizada de novo socioeducativo, enfrenta oposição tanto do Ministério dos Direitos Humanos quanto do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente).

O piloto é uma parceria entre Governo Federal, Caixa Econômica Federal, Estado de Minas Gerais e Escritório das Nações Unidas para Serviços de Projetos (Unops). Recebeu R$ 67 milhões, junto a Santa Catarina, que vai construir um centro, em recursos recuperados pela Operação Lava Jato.

A licitação, com leilão em abril na B3, prevê R$ 860 milhões em investimentos privados em 30 anos de contrato, com 9,45% de retorno anual à empresa que levar a concorrência.

O leilão terá como critério o menor pagamento feito pelo Estado pelo serviço prestado. A contraprestação mensal máxima é de R$ 3,35 milhões, com receita anual de R$ 40,1 milhões para a vencedora.

"A PPP é proposta antiga que parte da falácia de que falta investimento estatal", diz Betina Barros. "Empresas estão interessadas nos financiamentos e em baratear a execução."

Segundo a socióloga, adolescentes vulneráveis são prioridade absoluta do Estado. "É complicado transferir as obrigações de proteção, educação e de restabelecer vínculos para o privado, são temas sensíveis."

O Conanda definiu o projeto como "ameaça aos direitos dos adolescentes", uma vez que "esforços deveriam ser direcionados à qualificação da execução de medidas em meio aberto, e não para expansão de unidades de internação."

Em julho de 2023, o MDHC afirmou que a adoção da gestão privada não é orientação do atual governo. "Os governos estaduais necessitam de parcerias para execução do sistema, mas a gestão deve ser direcionada pelo Estado por envolver privação da liberdade de adolescentes." A pasta afirmou que cumpriria as obrigações contratuais sem avançar no modelo.

"Diferenças de agendas são normais, mas o parecer foi favorável ao projeto", afirma Giselle Cyrillo, subsecretária de Atendimento Socioeducativo da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais.

Ela explica que os dois centros, com 90 vagas masculinas cada, a serem construídos nas cidades de Betim e Santana do Paraíso, vão desativar os socioeducativos Ipatinga, Santa Helena e Lindeia.

"Não teremos acréscimo de vagas, a implementação dessas unidades significa o fechamento de outras fora dos padrões", diz Cyrillo.

Em 2020, pesquisa do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) apontou necessidade de reforma em 74% dos alojamentos, 60% das salas de atividades e 71% das quadras esportivas.

"E me causa perplexidade que entidades que garantem direitos de crianças e adolescentes defendam a recomposição de estruturas que não são usadas nem no sistema prisional", diz ela.

O socioeducativo mineiro abriga, em 39 unidades, 805 adolescentes em 1.136 vagas, com 70% de taxa de ocupação —era de 50% em 2023. "Vivemos um momento atípico, sempre foi superlotado", diz Cyrillo.

No novo socioeducativo, o Estado é responsável pela execução da política pública, segurança e integridade dos adolescentes e pela fiscalização da PPP. O ente privado fica com a construção, manutenção e operação de serviços como alimentação, vestuário, educação, apoio jurídico, atendimentos de saúde e conexão com familiares.

"Nossa expectativa é criar um modelo replicável como alternativa aos desafios do sistema", afirma a subsecretária.

O estado de SP estuda proposta de gestão privada da Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), enquanto Santa Catarina avança com sua PPP.

Em 2021, o governo de MG contratou o Unops, escritório da ONU que criou um guia arquitetônico e diretrizes para os serviços, fez análises econômicas e avaliação de impacto.

"Olhamos para países como Chile, França, Espanha e Uruguai e consideramos a experiência de Minas no Complexo Penitenciário de Ribeirão das Neves", diz Bernardo Bahia, gerente de projetos no Unops.

Um dos pontos avaliados na PPP do sistema carcerário mineiro foi a gestão do contrato. "Vimos questões que não funcionaram, como indicadores de desempenho muito abertos, então criamos indicadores objetivos para gerar menos disputas."

Outro modelo testado em MG é a Apac – Associação de Proteção e Assistência aos Condenados. A unidade juvenil, inaugurada em 2021 em Frutal, tem apenas 12 das 50 vagas ocupadas em método que mescla rotina de estudos, trabalho e religião.

Com 49 unidades para adultos no estado, a Apac é referência no atendimento humanizado e na recuperação de presos —com reincidência de 14% enquanto a média no país é de 80%.

"Minas Gerais aposta na diversidade de modelos e a adoção de um não exclui outro", diz Giselle Cyrillo.

O Ministério dos Direitos Humanos e a Secretaria Especial para o Programa de Parcerias de Investimentos não atenderam à reportagem da Folha. Em evento que discutiu o sistema no final de fevereiro, houve críticas à PPP.

"Precisamos reconhecer a socioeducação como política pública e não se faz isso sem dados, sem dinheiro e sem ouvir o beneficiário", afirmou Mayara Souza, coordenadora-geral de Políticas Públicas Socioeducativas no MDHC.

"Isso cresceu com a onda conservadora que sobrepõe a segurança sobre a finalidade das medidas socioeducativas", disse Sorimar Sabóia, presidente do Fórum Nacional de Dirigentes Estaduais do Sistema de Atendimento Socioeducativo.

"Empresas estão tomando conta, do pagamento de pessoal ao serviço na ponta, e vai se tornar negócio se não fizermos a defesa da política pública como função do Estado."

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