Descrição de chapéu Minha História Enem

'Perdi tudo que usava para estudar na enchente, mas consegui chegar à faculdade'

Quase dois anos depois de ter a casa alagada, jovem pernambucana conta como conseguiu ser aprovada em vestibular da Universidade Federal de Pernambuco

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São Paulo (SP)

Ao abrir os olhos naquela manhã de maio de 2022, Analice Frazão, 26, pressentiu que havia algo de errado. Bastaram alguns segundos para que a moradora de Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife, percebesse que o forte barulho que ouvia era o som da água invadindo sua casa.

Paralisada pelo susto, Analice demorou para notar que a própria cama flutuava. Em questão de minutos, a água avançara sobre eletrodomésticos e móveis da residência, atingindo rapidamente um metro de altura.

Com a ajuda da mãe e de vizinhos, a jovem tentou salvar documentos e roupas. Todo o resto se perdeu, exceto o refrigerador, colocado às pressas sobre uma cadeira.

O drama acrescentou tensão a um momento já conturbado na vida de Analice: aquele era o ano em que ela se dedicaria à preparação para o vestibular. Antes disso, nunca conseguira ter uma rotina intensa de estudos, já que trabalhava para ajudar no sustento da família.

menina segurando papel que mostra sua colocação em vestibular
Analice Frazão foi aprovada em biblioteconomia na Universidade Federal de Pernambuco - Arquivo pessoal

Desde o ensino médio, quando cursava aulas à noite e era vendedora durante o dia, Analice divide com a irmã a responsabilidade de apoiar financeiramente a mãe, que sofre de depressão grave. O sonho da universidade ficou ainda mais distante quando o pai deixou de pagar a pensão alimentícia.

Na virada de 2021 para 2022, a estudante decidiu que era hora de tirar da gaveta o plano de continuar sua formação, apesar dos obstáculos.

Porém, após a enchente, ela conta que "se entregou à tristeza" e quase desistiu de vez dos estudos. "Pensava comigo mesma: tenho 24 anos e não consegui nada na vida. Como ainda perco o pouco que tenho?", recorda-se emocionada.

Analice não desistiu. Foi aprovada na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), no início de 2023. A seguir, o depoimento da aluna do curso de biblioteconomia.

"Depois de três dias consecutivos de chuva, um canal próximo da minha casa transbordou. Nunca tinha passado por uma situação assim, porque não moro em região de risco.

Minha família perdeu alimentos, fogão, camas e a escrivaninha que eu usava para estudar. Não sobrou quase nada.

Voltamos para ver a casa no mesmo dia da enchente, depois que a água baixou. Vi que tinha perdido livros e apostilas. Até as canetas que tentei salvar estavam cheias de água e não funcionavam mais.

O mais dolorido foi ver a conquista de anos —materiais escolares que guardei por toda a vida, porque sempre gostei de estudar— jogada fora. Me lembro bem do momento em que o caminhão de lixo parou em frente e tive que reunir tudo e levar até lá.

Além de muita tristeza, me bateu um sentimento de incompetência. Será que eu não seria capaz de sair daquele ciclo?

Analice Frazão

Estudante da UFPE

Tinha começado 2022 estudando, muito focada. Mas justamente o ano que tirei para me dedicar ao sonho de ingressar na universidade se tornou o pior de minha vida.

Estudei em escola pública nos ensinos fundamental e médio. Cursei o ensino médio em uma turma de alunos mais velhos, no período noturno, pois precisava trabalhar durante o dia. Devido à idade dos alunos, a escola não dava tanta importância ao vestibular.

Mas sempre escrevia redações e mostrava à professora de gramática, que corrigia do jeito que dava e me devolvia. Mesmo com as dificuldades e com a falta de apoio da escola, sempre imaginei que, em algum momento, ingressaria na universidade.

Em minha família, só minha irmã se formou [em fisioterapia]. Somos muito unidas. Vejo-a como um espelho positivo para mim.

Foi ela quem me incentivou a não desistir, depois da catástrofe. Ela comprou um caderno e uma caneta e disse que eu precisava continuar estudando. E assim fiz.

Por coincidência, entrei certo dia no Instagram e vi uma menina que não conhecia falando sobre o Acelere no Enem [curso pré-vestibular online e gratuito]. Me matriculei, fui adicionada ao grupo de WhatsApp do curso e passei a ter aulas virtuais.

Acabei me surpreendendo. Além das aulas, tive acesso a monitorias, que eram muito úteis para tirar dúvidas. Mesmo assim, não acreditava de verdade que poderia passar.

Nesta época, já havíamos voltado para casa, depois de morar por um mês com uma tia. Vizinhos e amigos nos ajudaram com doações e, aos poucos, fomos repondo o que perdemos. Fiz, também, uma vaquinha online. No início, tínhamos apenas uma geladeira, um fogão e duas camas.

Foi quando surgiu outro problema: minha mãe teve uma crise forte de depressão e precisou ser internada. No hospital, ela recebeu o diagnóstico de esquizofrenia.

Ela já tinha sido socorrida outras vezes, mas, até então, nunca fora internada. Conversando com o médico, ele nos explicou que o choque de ver tudo perdido provavelmente foi tão grande que desencadeou a crise.

Hoje em dia, a doença está controlada, mas minha mãe não é mais a mesma pessoa de antes.

Depois do diagnóstico, tive que passar a cuidar dela durante o dia, porque minha irmã trabalha fora. O único momento em que conseguia estudar e assistir às aulas do cursinho, que ficavam gravadas, era de noite e de madrugada, quando minha mãe estava dormindo.

Geralmente, conseguia participar das monitorias de dia, por elas serem mais curtas.

Além disso, não tinha um computador. Estudava pelo celular mesmo. Como estava sem livros, usava os materiais didáticos disponibilizados pelo Acelere.

Alguns meses depois, chegou o dia do vestibular. Saí da prova me sentindo revigorada. Por mais que seja uma prova cansativa, simplesmente estar ali foi uma vitória. Achava que realmente não conseguiria dar continuidade ao meu objetivo depois de um ano tão difícil.

Quando saiu a nota no Sisu, confesso que não quis conferi-la. Tive medo de olhar. Mas quando o cursinho mandou mensagem avisando que o resultado havia saído, tomei coragem para entrar no site. Ao saber da aprovação, fiquei com receio de comemorar.

Achava que não merecia aquilo. Pensava que seria melhor esperar para ver se realmente daria certo. Felizmente, foi isso que aconteceu.

Desde maio do ano passado, curso biblioteconomia na UFPE e tenho planos de continuar na área acadêmica.

Continuo matriculada no Acelere. Tenho dificuldade em gramática, e os materiais e aulas do curso me ajudam a escrever os trabalhos da universidade.

Compartilho minha história sempre que posso, porque, se tivesse visto alguém com uma trajetória parecida com a minha quando era vestibulanda, teria me sentido mais motivada."

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