Descrição de chapéu África

Empresária brasileira se muda para a África do Sul para fugir de racismo

Dona da agência de turismo Brafrika, Bia Moremi trocou o bairro de Santa Cecília (SP) pela Cidade do Cabo e encontrou pertencimento racial

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São Paulo (SP)

Quando o pai da empresária paulistana Bia Moremi sofreu um episódio de racismo no condomínio onde morava, em 2022, ela soube que era hora de deixar o Brasil.

A ideia não era nova: há muitos anos, a bacharel em química pensava em dizer adeus à Santa Cecília, bairro no centro de São Paulo, lugar em que cresceu e passou a maior parte da vida. Cansada da violência e da degradação da região, Moremi cogitou simplesmente se mudar para um local mais seguro, mas temia enfrentar preconceitos.

"Se quisesse morar em um bairro melhor, necessariamente esbarraria em uma classe média extremamente racista, que acha que está 'no topo da cadeia alimentar' só porque fez o enxoval em Miami. Decidi que não iria aceitar ser destratada."

Uma mulher está posando em uma praça pavimentada com tijolos vermelhos. Ela veste um conjunto de calça e top bege, um casaco branco e óculos de sol. Ao fundo, há várias pessoas caminhando e um mercado ao ar livre com tendas. Palavras e uma estátua de uma pessoa em pose de equilíbrio são visíveis. Atrás da praça, há uma montanha com vegetação e um céu azul claro.
Bia Moremi é fundadora da agência de turismo Brafrika, que oferece viagens para lugares que contam a história ancestral da população negra - Arquivo pessoal

O caso de racismo envolvendo o pai serviu como lembrete da discriminação racial à qual ela também está sujeita enquanto mulher negra.

Escolher um novo lugar para chamar de casa foi fácil: desde que visitou a África do Sul pela primeira vez, em 2019, Moremi se apaixonou pelo país. Apesar de já ter morado por breves períodos na França e na Alemanha, ela garante que nenhuma cidade europeia foi capaz de tirar seu fôlego como as metrópoles Joanesburgo e Cidade do Cabo.

As paisagens cênicas, o estilo dos sul-africanos e a sinfonia de idiomas do país, que tem mais de dez línguas oficiais, encantaram a brasileira desde o primeiro dia.

"É bobagem achar que África do Sul se resume a safari. Aqui tem tanta gente legal, tanta música, tantas festas. Fiquei impressionada pela forma como as pessoas aqui se vestem e falam", conta.

A paixão pelo lugar foi tanta que, quando retornou da viagem, em outubro de 2019, Moremi, que havia fundado a agência de turismo Brafrika no início daquele ano, teve a ideia de criar pacotes de viagens para o país.

Focada em turismo afrocentrado, a Brafrika oferece roteiros no exterior e no Brasil, com viagens e passeios por locais que guardam relação com a história da população negra, como o Quilombo dos Palmares, em Alagoas, e a cidade histórica de Ouro Preto (MG).

Atualmente, o principal serviço da empresa é um programa de intercâmbio em inglês na África do Sul, lançado em novembro de 2023. Desde então, o produto dobrou o faturamento da agência.

"Lembro-me de ver um grupo de senhoras super animadas subindo a Table Mountain [montanha que é cartão-postal da Cidade do Cabo] e pensar: é isso o que eu quero. Grupos de idosas pretas viajando para outro país por conta própria."

Moremi decidiu pedir demissão do cargo de executiva de contas em uma empresa do ramo industrial para se dedicar integralmente à Brafrika.

Até o início de 2020, a agência havia realizado passeios com dezenas de turistas e receberia, após o Carnaval, um grupo de americanos para uma viagem a São Paulo e Rio de Janeiro.

"Tinha cinco meses de trabalho garantidos [com as viagens marcadas] e uma quantidade financeira que ajudaria a me sustentar por um ano", diz.

Com a chegada da pandemia, os planos mudaram por completo. Devido à suspensão das viagens, a empresa passou a intensificar a oferta de outro serviço: exames de DNA para descobrir a ancestralidade.

Inicialmente, a proposta era que as pessoas descobrissem suas origens e, em seguida, viajassem para esses lugares. Porém, no período da crise sanitária, esse produto, que sustentou a agência por 19 meses, precisou ser adaptado.

"As pessoas descobriam a ancestralidade delas e ganhavam um pacote de experiências personalizado com base no resultado. Por exemplo, se a ancestralidade indicasse Gana, elas receberiam, em casa, um jantar com a comida típica desse país para duas pessoas", explica.

Os exames de DNA são oferecidos ainda hoje, em parceria com o laboratório de genética Genera. O pacote padrão (DNAfro Standard) custa R$ 550.

Bruno Santos/Folhapress
Bia Moremi fundou a agência de turismo Brafrika para aproximar pessoas negras de suas raízes - Bruno Santos/Folhapress

A ideia de colocar mais brasileiros em contato com as origens africanas veio do próprio anseio da empresária de conhecer mais sobre seus ancestrais. Moremi percebia que, ao contrário de amigos com ascendência europeia, ela sabia pouco sobre as próprias raízes.

"Tenho uma amiga que é descendente de espanhóis. Passei anos acompanhando-a enquanto ela se apresentava dançando flamenco. Ela até viajou para a Espanha para conhecer tios. Sempre ficava pensando: 'E eu, vou dançar o quê? Vou comer qual prato típico? Para onde vou viajar?"

O desejo de se aproximar das origens foi um dos fatores que a fizeram se mudar para o continente africano. Lá, sente um pertencimento racial que nunca experimentou antes —nem mesmo na relação com outras pessoas negras no Brasil.

A empresária conta que já se sentiu excluída por ter determinados privilégios.

Se você é uma mulher negra com corpo padrão, de pele clara, do centro de São Paulo, quando você vai se aproximar de uma galera que é periférica, de pele retinta e corpo fora do padrão, essas pessoas às vezes te olham quase como se você fosse uma grande Barbie

Bia Moremi

Empresária e fundadora da Brafrika

Por isso, Moremi sempre teve dificuldade em fazer amigos negros no Brasil, problema agravado pelo fato de que cresceu sem muito contato com pessoas negras, pois estudava em escolas com maioria de alunos brancos, e os poucos amigos negros que tinha moravam longe.

A relação com os colegas brancos era permeada pelo racismo. "As brincadeiras entre meus amigos muitas vezes eram bastante racistas e ofensivas. Quando me toquei disso, fui me percebendo muito isolada", conta.

Hoje, na África do Sul, onde mora há quase um ano e meio, ela tem um grupo de amigos de diferentes nacionalidades e se sente acolhida como nunca antes.

Um grupo de sete pessoas está sentado em uma mesa ao ar livre em um café. Todos estão sorrindo e parecem estar se divertindo. Há várias bebidas na mesa, incluindo coquetéis e sucos. Ao fundo, há um edifício verde com arquitetura clássica e outras construções urbanas. A mesa está coberta por um guarda-sol e há árvores ao redor.
Bia Moremi (à dir.) e amigos - Arquivo pessoal

"Consigo circular dentro dessa bolha de uma forma aberta, seja entre pessoas retintas, mais claras ou de cultura zulu, de cultura xhosa. Todas elas me recebem muito bem", afirma.

Outro ponto alto da Cidade do Cabo, segundo ela, é a qualidade de vida. Além de se sentir mais segura do que em em São Paulo, Moremi gosta de estar cercada pela natureza e de ver o pôr do sol ou de caminhar pela praia ao final do dia.

A cidade também oferece opções de entretenimento para todos os gostos: cafés, restaurantes, baladas, trilhas e galerias de arte.

Embora os pais ainda morem no Brasil, Moremi acha que eles podem optar por seguir seus passos futuramente. Neste ano, eles a visitarão pela primeira vez.

"Se a minha mãe falar 'Amei, vamos vender o apartamento [em São Paulo] e vir morar aqui', é capaz de meu pai aceitar. Não duvido", diz.

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