|
Saudades
de Nova York
Quando me mudei para Nova York, em 1995, planejava passar
apenas um ano longe do Brasil, arejar as idéias e,
em seguida, voltar para Brasília, cidade que meus filhos,
candangos, adoravam.
Os amigos, os colegas de trabalho e os familiares mais próximos
não acreditavam nos meus planos - especialmente quando
viam o apartamento em que morava, na Broadway, localizado
na região do Upper West Side, e a paixão com
que caminhava pelas ruas de Manhattan. Estavam parcialmente
certos.
Fiquei três anos lá e não voltei para
Brasília, onde minha vida já estava arrumada.
Nova York me indicava que o futuro não estava em Brasília,
ilhada pelas picuinhas do poder, mas em São Paulo,
refém, aparentemente de forma irremediável,
do caos.
Em câmera lenta, vi Nova York - tão desacreditada
por tanto tempo e por tanta gente - melhorar, transformada
num laboratório de soluções urbanas.
A parte mais visível desse movimento era a queda dos
índices de criminalidade, resultado da uma maior eficiência
da polícia, combinada com a expansão econômica
e com os milhares de programas de inclusão de crianças
e de jovens.
Uma das razões da vitalidade de Nova York - talvez
a principal- é a abertura à diversidade, a generosidade
com que aceita e acolhe os imigrantes. As ondas populacionais
são vistas, ao contrário do que acontece na
Europa, como fonte de renovação energética.
Os requisitos básicos daquela transformação
estão mais presentes em São Paulo do que em
qualquer outra cidade brasileira: a riqueza do capital humano,
a criatividade e a sofisticação intelectual
de uma expressiva parcela de seus habitantes, a vivência
com a diversidade cultural. Do confronto entre riqueza humana
e degradação urbana, só poderia surgir,
mais cedo ou mais tarde, algo inovador - e os artistas seriam
os primeiros a anunciar os novos tempos.
Voltei para São Paulo, onde nasci e me criei, na esperança
de participar - no mínimo, como testemunha - dessa
evolução. Estou convencido de que não
errei. A cidade reage.
Os sinais da reação estão nas múltiplas
ações de revitalização do centro
da cidade; combinam-se intervenções urbanísticas
com estímulo à cultura. É o caso do anúncio,
na semana passada, do Bela Vista Viva - uma parceria do poder
público com empresários ligados ao teatro e
ao entretenimento para recuperar o bairro do Bexiga.
Numa das regiões mais deterioradas do centro velho,
vai surgir, em breve, um gigantesco centro cultural, bancado
pelo Sesc; ao mesmo tempo, articula-se, na vizinhança,
a recuperação dos cinemas abandonados para fazê-los
teatros para musicais.
Viraram monumentos à arquitetura a Sala São
Paulo, para concertos, e a Pinacoteca do Estado, agora reformada.
Em pouco tempo, a estação da Luz será
um memorial à língua portuguesa e, na antiga
sede do Dops, haverá uma escola de música. Empresários
adotam parques, praças, canteiros e monumentos.
Há sinais positivos, embora ainda tímidos,
em programas públicos de complementação
de renda que visam ao estímulo à educação.
E, mais ainda, na postura das elites econômicas que
patrocinam projetos de inclusão. São Paulo é
o berço brasileiro do que se convencionou chamar de
"terceiro setor", segmento da sociedade civil cujas
ações vêm desmontando, aos poucos, a noção
de que o público é o oficial. Essa é
a cara mais moderna da política.
Sem minha vivência em Nova York, não teria olhos
para entender a lógica da reconstrução
de uma cidade que apenas nas aparências é decadente
e falida. Isso ocorre menos por causa dos governantes do que
pela criatividade e pelo espírito pioneiro de seus
moradores.
Os atentados da semana passada não doeram em mim só
pela óbvia tragédia das vidas perdidas. Senti
como se ferissem uma sala de aula onde tive lições
valiosas. Sensibilizei-me, acima de tudo, porque Nova York,
o espaço da tolerância, foi vítima de
um gesto supremo de intolerância.
Há, evidentemente, egoísmo. Aprendi a gostar
das ruas de Nova York por causa, primeiro, de seus personagens
anônimos, da multiplicidade de cheiros dos seus restaurantes,
da sensação de que ali tudo é possível.
Depois, porque, ao se tornarem mais seguras e mais bem-humoradas,
produziam ensinamentos vitais para um paulistano. Estimularam
nos moradores das grandes cidades brasileiras a esperança
de que houvesse uma alternativa para controlar a violência.
Desde a semana passada, aquela conquista de ruas melhores
ficou abalada. Vive-se ali a percepção da vulnerabilidade,
a suspeita de que, em qualquer esquina, um lunático
possa explodir um prédio.
É como se, com as torres do World Trade Center, ruísse
também o esforço de milhões de habitantes,
anônimos em sua engenhosidade cotidiana.
Gostava de pensar que, quando a saudade apertasse, sempre
teria a chance de pegar um avião e voltar para aquelas
ruas cheias de lição e de prazer.
Mas estou desconfiado de que aquelas ruas que conheci vão
ficar, pelo menos por um bom tempo, na saudade.
PS - Meu maior temor é que, por conta de uns poucos
fanáticos, a cidade já não tenha a mesma
generosidade com a diversidade humana. E então a Nova
York em que eu vivi será sempre uma saudade.
| |
| Subir
| |
|