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  28 de dezembro
  Mudança de século
 

A cada cem anos, retorna uma questão complexa que atormenta a humanidade: devemos celebrar a mudança de século _e, neste caso, também a de milênio_ na noite do próximo domingo ou deveríamos tê-lo feito um ano atrás, na passagem de 1999 para 2000?

Pela abordagem estritamente lógica, o problema é até simples. O século 19 leva esse nome porque termina em 1900, no último dia deste ano, ou seja, em 31 de dezembro de 1900. Assim, o século 20 começou em 1º de janeiro de 1901 e terminará em 31 de dezembro de 2000. O réveillon do milênio, portanto, seria no próximo domingo. Mas, até onde pude perceber, a grande festa foi no ano passado.

Quem lança luzes sobre o assunto é Stephen Jay Gould, em "Dinossauro no Palheiro". Segundo Gould, pode-se optar tanto pela lógica puramente matemática do sistema, que determina que os séculos mudam nos anos 01, como pelas exigências estéticas de nossa sensibilidade, que jogam as celebrações para os anos terminados em 00.

Antes de prosseguir, contudo, convém dar a César o que é de César. E os louros, no presente caso, pertencem a Dionysius Exiguus (literalmente, Dionísio, o Baixo). Não se sabe se a alcunha se refere a sua estatura ou a seu intelecto, mas o fato é que a origem de quase todas as nossas dificuldades concernentes à organização do calendário podem ser traçadas até a atuação desastrada deste monge do século 6º.

Encarregado pelo papa João 1º de preparar uma cronologia cristã, Dionysius enredou-se numa comédia dos erros cujas consequências até hoje amargamos. O pequeno monge estimou o nascimento de Cristo em 25 de dezembro de 753 A.U.C. ("ab urbe condita", ou seja, desde a função de Roma) e, a partir daí, decidiu iniciar a contagem do tempo, não exatamente no dia 25, mas uma semana depois, em 1º de janeiro de 754 A.U.C., ou seja, na sua Festa de Circuncisão, que, não por acaso, coincidia com o Ano-Novo romano.

Aí também reside seu primeiro erro. O Cristo não pode ter nascido em 753 A.U.C., pois Herodes morreu em 750 A.U.C. Se eles foram mesmo contemporâneos, como querem os Evangelhos, o garoto deve ter nascido no mínimo em 4 a.C. Esta imprecisão temporal, contudo, foi o menor dos pecados do mongezinho.

Ao chamar o 1º de janeiro de 754 A U.C. de ano um (1 AD, Anno Domini) e não de ano zero, ele simplesmente embaralhou todas as nossas noções de contagem. Pelo seu sistema, a linha de tempo entrou no segundo ano quando Cristo celebrava seu primeiro aniversário.

Algebricamente, o absurdo é ainda maior. A ausência do ano zero faz com que a transição a.C.-d.C. não possa ser calculada sem a introdução de uma correção. O intervalo de tempo entre, digamos, 1,5 a.C. e 1,5 d.C. é de dois anos e não de três, como se poderia suspeitar. Em favor de Dionísio, é preciso lembrar que o conceito de zero como número só se tornaria popular na Europa lá pelo século 10.

Parece claro que é daí que advêm todos os nossos problemas respeitantes à contagem dos séculos. Se o sistema de Dionísio contivesse o ano zero, os séculos, unindo razão e sensibilidade, mudariam na passagem do 99 para o 00, e não do 00 para o 01.

Uma outra solução, como observa Gould, seria considerar que a primeira década teve apenas nove anos, mas essa elegante exegética não seria capaz de contentar os amantes incondicionais da lógica. Para eles, a década deve ter dez anos em todas as circunstâncias, ainda que etimologicamente "década" signifique apenas "dez dias".

Estes mesmos cultores das forças das estruturas e operações do pensamento argumentam que os seres humanos, enquanto criaturas racionais, deveriam ser capazes de submeter a sensibilidade à lógica, todavia a primeira parece ter mais vigor, a ponto de sobrepujar a segunda. Parece difícil entusiasmar-se pelo ano 2001 quando já temos 12 meses de ano 2000.

As figuras centuriais _o 000 de 2000_, como as chama Gould, são o símbolo, e o único símbolo, dos séculos. Pode parecer infantil, mas nossas faculdades mentais são atraídas quando ocorre uma mudança em todas as casas do algarismo, e não quando há um mero incremento de 1 à última.

Até o século 11, a discussão não fazia sentido, pois as sandices proferidas por Dionísio ainda não havia sido aceitas (em alguns aspectos, os antigos eram muito mais sábios do que nós). O primeiro sinal de desavença em torno da passagem do século se deu em 1699-1701, quando a segunda data prevaleceu quase unanimemente, num indício de que a interpretação dada pela alta cultura era mais forte do que a de inspiração popular.

A visão intelectual ainda prevaleceu soberana até a passagem do século 19 para o 20, quando as primeiras vozes pró-00 se fizeram notar. Se, de um lado, como mostra Gould, os reitores de Harvard, Yale, Princeton, Cornell, Columbia, Dartmouth, Brown e Pennsylvania, todos, opinaram em favor de 1900-1901, de outro, o kaiser Guilherme 2º, da Alemanha, decretou que a passagem ocorreria em 1899-1900. Sigmund Freud o apoiou.

E Freud não pode ser chamado propriamente de apologista inconsequente da cultura popular. É, antes, um dos grandes nomes da erudição. Mas a atenção ao papel das figuras centuriais, que, no fundo, são um espaço do simbólico, deve ter falado mais alto.

Mas, voltando ao que interessa, observamos agora uma incrível virada da interpretação popular. Na passagem do século 21, triunfou o réveillon 1999-2000. Os que defendem a data 2000-2001 são antes intelectuais querendo chocar uma audiência.

Eu, de minha parte, só posso adotar a mesma posição de Gould e sugerir que as duas interpretações são válidas, ou, antes, que essa é uma falsa questão, ainda que muito interessante. É um pouco como seguir um dispositivo caduco de uma Constituição. Queremos celebrar em 00, mas a observância à regra exige que o façamos em 01. De qualquer forma, creio que não há mal nenhum em celebrarmos a chegada do século duas vezes. Até porque dificilmente assistiremos à vinda do próximo, seja em 2100, seja em 2101.

PS - Saio para um breve período de férias, em que o leitor se verá poupado de meus escritos duvidosos.




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