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10/11/2005 - 05h05

Fado vadio reflete lado lamurioso de lisboetas anônimos

FABIO SCHIVARTCHE
Enviado especial da Folha de S.Paulo a Lisboa

Esta é uma história de vida e morte contada em dois tempos. O cenário, as tascas de Lisboa. Os personagens, Maria Celeste, a telefonista, Tininha, a cozinheira, e Rui de Castro, o engraxate. Todos cantores de fado vadio, amadores que de noite soltam a voz sob as luzes coloridas do palco.

A telefonista Maria Celeste canta fado vadio
A cozinheira Tininha em sessão de fado
O engraxate Rui de Castro, na Tasca do Chico em 2001

Eu os conheci na primeira vez em que estive em Lisboa, em agosto de 2001, em meio a uma busca pelas origens do fado. Foi quando descobri as semelhanças dessa música triste e lamentosa com as cantigas de amor da Idade Média e até com o lundum e a umbigada africanos, que teriam passado pelo Brasil e desembarcado em Lisboa com os marinheiros há quase dois séculos.

Muito antes de ser aceito pela elite e cantado mundo afora por Amália Rodrigues, o fado ficou restrito aos bairros pobres de Alfama e Mouraria, associado à prostituição e à vadiagem. Era cantado por gente do povo e para o povo. Gente como Rui de Castro, que em sua vida só freqüentou restaurantes chiques da área nobre de Lisboa para engraxar os sapatos dos clientes.

Sem família, sem dinheiro e por vezes sem teto, ele vivia de favores dos amigos, como Francisco Gonçalves, o dono da Tasca do Chico, um dos principais pontos de encontro dos fadistas vadios no Bairro Alto. Cantava por lá toda semana, mocassim preto brilhando, terno cinza impecável e permanente copo de cerveja na mão --ninguém ganha para cantar fado vadio, mas a bebida é grátis.

Aos 72 anos, dizia que cantava para transmitir o sofrimento do povo. "O fado é triste porque o diabo está sempre atrás da porta. Mas Deus está do nosso lado, o que acaba compensando." Afirmou nunca ter entrado numa casa típica de fado. "Lá as pessoas são oprimidas. Cantam só por dinheiro", opinava esse fã declarado do romântico Roberto Carlos e de Alfredo Marceneiro, ícone da música portuguesa.

Outra legítima representante do povo nas noites vadias de Lisboa é Maria Celeste Bragança. "A pessoa tem que ter sofrido na vida para cantar fado. Tal qual os latinos", dizia acreditar essa telefonista de 65 anos, que sempre engole uma colherada de açúcar e um longo gole de conhaque com mel antes de se lançar nas tascas.

A geração mais jovem também marca presença, como é o caso de Maria Argentina Ferreira, a Tininha, 38 anos vividos na Alfama, boa parte deles na cozinha do restaurante Arco-íris.

Dona de uma voz grave, ela canta amadoristicamente desde os oito anos. Gosta mesmo é do fado desgarrado, feito à base de improvisação de versos, tal qual o repente brasileiro. E, radical, rejeita as casas de fado. "Lá, os cantores são como palhaços profissionais, que precisam rir mesmo sem vontade. Fado tem que ser sentido no fundo da alma, com a verdade interior. Se não, não é fado."

Polêmica

A rixa entre o fado vadio e o profissional gera acaloradas discussões em Portugal. "Vadio é uma palavra forte e negativa. Isso é só um conceito oportunista que inventaram para jogar com o estereótipo de marginalidade. Canto fado e pronto", critica Dolores Silva, que se diz "artista semiprofissional" de um bar no Bairro Alto.

"Discordo dela. Ninguém está no fado impunemente. É música, é sofrimento, é vadio como nossa vida", diz o aposentado Horácio Sebastião, 68, ex-atleta de luta livre que canta nas madrugadas de um dos segredos mais bem guardados de Lisboa --o restaurante O Fado, que reúne num "petit-comité" a partir da 1h os profissionais que estão saindo dos shows feitos para turistas.

Quem for lá não verá rixa, mas harmonia entre profissionais e amadores. Vai encontrar desde o taxista Vitor Manuel, cujo cartão de visitas o apresenta como "Vitocas, um táxi a serviço permanente do fado", ao casal Jorge Fernando e Ana Mora, respectivamente o ex-parceiro de Amália Rodrigues e a nova sensação da indústria fonográfica portuguesa.

Ana, 26, começou a carreira no fado vadio, de tasca em tasca. Foi descoberta e hoje tem no currículo shows no Lincoln Center, em Nova York. "O bom é que o fado vadio permite a aparição de novos valores", defende Fernando.

Segundo tempo

No mês passado, após quatro anos, voltei às tascas de Lisboa. Conheci outros músicos, novos versos e melodias. E saí à procura de Maria Celeste, Tininha e Rui.

As duas primeiras continuam levando sua vida dupla, de trabalhadora e artista.

Rui morreu. Segundo os amigos e os fadistas que o conheciam, na miséria.

Pouco antes, ele ainda era visto cantando pelas tascas em troca de uma cerveja. Hoje, sua foto estampa a parede da Tasca do Chico, seu palco predileto.

Ele foi enterrado anonimamente, como indigente. Se tivesse direito a uma lápide, a inscrição no mármore deveria ser a frase com que abria suas apresentações: "Boa noite, solidão".

Rui de Castro viveu um fado e morreu como ele, vadio.

ONDE OUVIR O FADO VADIO EM LISBOA

Tasca do Chico
R. Diário de Notícias, 39, Bairro Alto; tel.: 00/xx/351/96/505-9670; funciona de segunda e quarta
Caldo Verde
Travessa Poço da Cidade, 40; tel.: 00/xx/351/21/342-2091; funciona às terças, quartas e domingos
Restaurante O Fado
R. do Telhal, 11, tel.: 00/xx/351/ 93/457-9463; funciona todas as noites, a partir da 1h

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