Clássico da música para crianças, 'Arca de Noé' celebra 40 anos

Com canções como 'A Foca' e 'O Gato', disco se baseia em poesias de Vinicius de Moraes

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São Paulo

Houve um tempo em que um poeta construiu um lugar seguro para todos os bichinhos do mundo. O poeta chamou este lugar de livro. O livro cresceu e, um dia, virou música. E os bichos todos ficaram morando para sempre em um disco, chamado “A Arca de Noé”.

Capa do disco com letreiro colorido "arca de Noé" e ilustrações de animais como girafa, onça, macaco, foca, tucano, coruja
Capa de "A Arca de Noé", disco de vinil lançado originalmente em 1980 e relançado em 1993 no formato CD - Divulgação

Noé é o nome do personagem bíblico que fez e conduziu a embarcação onde pares de todos os animais se abrigaram para se salvar de um dilúvio. E Vinicius de Moraes é o nome do artista que, há 40 anos, transformou essa história em um dos maiores marcos da música brasileira.

Desde o seu lançamento, com a versão musicada dos poemas que Vinicius escreveu nos anos 1950, o infantil “A Arca de Noé” nunca saiu dos aparelhos de som das famílias com crianças.

Quem era pequeno na época não só se lembra de cor das canções, como também agora as apresenta às novas gerações.

“Vinicius me incentivou a musicar poemas de seu livro. Foi ficando interessante, e partimos para fazer um disco, que alcançou um sucesso retumbante”, lembra Toquinho, parceiro daquele que foi um dos maiores escritores e músicos brasileiros.

Vinicius morreu em 1980, poucos meses depois do lançamento.

Zuza Homem de Mello, jornalista especializado em música brasileira, define “A Arca de Noé” como um “superdisco, um marco na fonografia brasileira”.

Assim como faz Toquinho, ele também credita boa parte do êxito à escolha dos intérpretes –o time conta, entre outros, com Elis Regina, Chico Buarque, Ney Matogrosso, Milton Nascimento, Moraes Moreira, Walter Franco e Bebel Gilberto.

“Foi a primeira vez que participei de um projeto infantil, e cantei uma música chamada ‘A Foca’”, conta Alceu Valença. “Fiz um personagem inspirado no teatro de mamulengos, mas também com uma forte influência circense, dois elementos muito presentes na minha infância”.

“Improvisei brincadeiras com o que seria a foca francesa, toda glamurosa, a americana, cheia de dólares, e a coitadinha da brasileira. A criançada adorava. Mas também havia uma crítica social oculta: a foca brasileira passava fome, não tinha sardinha para ela”.

A designer editorial Paula Cortinovis, 39, lembra-se bem de como se sentia ao ouvir a canção. “Creio que foi meu primeiro contato com um viés político. Eu entendia que os norte-americanos eram muito ricos, e brasileiros passavam fome. Eu pensava sobre aquilo, fazia o link com as conversas que eu escutava entre os adultos”, diz.

Paula é mãe de Stella, que tem sete anos e ouviu pela primeira vez “A Arca de Noé” quando ainda era bem pequenininha. O vinil estava encostado na casa do pai de Paula, que, empolgado com o nascimento da neta, gravou as músicas em um CD.

“Ainda fez uma cópia digital da capa em tamanho menor”, celebra Paula. Assinada por Elifas Andreato, a capa de “A Arca de Noé” trazia um atrativo inédito na história da MPB, como conta Zuza.

“Era um desenho com bonecos para recortar e colocar dentro da arca. A criançada mergulhou de cabeça, levava para a escola. Uma capa absolutamente original, praticamente um álbum de figurinhas para o público infantil”, diz.

Além de Andreato, outra figura que determinou a trajetória bem-sucedida do disco, na visão de Zuza, foi o produtor executivo Fernando Faro, morto em 2016. O jornalista explica que Faro direcionava muito bem as interpretações dos cantores para as exigências de um disco infantil.

Segundo Zuza, “mesmo cantores de grande personalidade acabaram concordando [com as orientações de Faro] e comprando a ideia”. Um exemplo é Marina Lima, que assumiu os vocais de “O Gato”.

“Lembro que foi uma alegria danada ter sido chamada para participar. O núcleo era a nata da MPB, foi incrível”, recorda-se Marina. “A música do gato era ótima, dava para brincar imitando com a voz os pulos que os gatos dão, de lado, para cima, para baixo. Fiz isso e as crianças amaram”.

Toquinho lembra também a história de outro hit, “Menininha”.

“Foi inspirada numa garotinha de quatro aninhos, a Camilinha, que morava na casa onde ficamos hospedados em Mar Del Plata, numa excursão em 1971. Ela era uma gracinha, sempre dançando para nós com leveza e ingenuidade”.

“Vinicius resolveu fazer um poeminha como que recomendando que ela tivesse cuidado com tudo de ruim que a vida pode provocar, sugerindo que ela não crescesse”, conta. “Nosso disco tem como principal característica a originalidade, que inclui a poesia justa para a compreensão da criança aliada à qualidade melódica, simples e agradável aos ouvidos, não só das crianças, mas dos adultos também”.

“Como não amar Milton, Chico, Elis, Marina, Toquinho, Moraes e tantas vozes únicas da música brasileira em canções que marcaram a infância?”, pergunta Aline Abe Pacini Matsumoto, 39, empresária, mãe de três filhas e grávida da quarta.

Desde que a mais velha, Letícia, nasceu, “A Arca de Noé” toca com frequência na casa da família. “Vira e mexe a gente busca registros na internet, filmagens da época”, completa a mãe, seguida por Paola, 10: “Eu gosto muito das músicas. Elas são engraçadas.”

Personalidades da música comentam "A Arca de Noé"

Toquinho

Esse nosso disco tem como principal característica a originalidade, que inclui a poesia justa pra a compreensão da criança aliada à qualidade melódica, simples e agradável aos ouvidos, não só das crianças, mas dos adultos também.

Essa canção foi inspirada numa garotinha de 4 aninhos, a Camilinha, que morava na casa onde ficamos hospedados em Mar Del Plata, numa excursão, em 1971. Ela era uma gracinha, sempre dançando pra nós com leveza e ingenuidade. Vinicius resolveu fazer um poeminha como que recomendando que ela tivesse cuidado com tudo de ruim que a vida pode provocar, sugerindo que ela não crescesse mantendo aquela ingenuidade.

Alceu Valença

Improvisei umas brincadeiras com o que seria a foca francesa, toda glamurosa, a americana, cheia de dólares, e a coitadinha da brasileira. A criançada adorava. Mas também havia uma crítica social oculta: a foca brasileira passava fome, não tinha sardinha pra ela.

Marina Lima

A música do gato era ótima, dava para brincar imitando com a voz os pulos que os gatos dão, de lado, pra cima, pra baixo. Fiz isso no canto e as crianças amaram.

Zuza Homem de Mello

Um disco como este é um sonho impossível de ser realizado nos dias de hoje.

Com orquestra, aquela quantidade de músicos, instrumentos sinfônicos como fagote, e ainda um arranjador como o Rogério Duprat. Tudo isto demonstra o espírito que o disco tem: o de dar à criançada musica da melhor qualidade. Todos os gêneros e ritmos são genuinamente brasileiros.

A Arca de Noé
Philips, 1980
Direção artística: Mazola
Produção executiva: Fernando Faro
Arranjos: Rogério Duprat e Toquinho
Criação da capa, adaptação gráfica e ilustração complementares: Elifas Andreato (sobre originais de Antonio Bandeira)

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