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Quebradinha faz sucesso no Instagram com miniaturas de construções da periferia

Nascido no sertão de Alagoas, Nenê foi entregador e ajudante antes de virar artista e criar casinhas com material reciclável

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São Paulo

Fazia mais de um ano que Marcelino não via seu pai quando desembarcou de um ônibus em São Paulo. Vinha de Carneiros, cidadezinha no sertão de Alagoas, junto com a mãe e os dois irmãos.

Ao mesmo tempo em que matava as saudades, prestava atenção a tudo que passava no caminho: prédio, escadaria, arranha-céu, carro. Nos primeiros dias na cidade nova, sentava na calçada da frente de casa para ver o movimento.

Uma das casinhas do perfil Quebradinha, de Marcelino Melo - Divulgação

Aos poucos, foi ganhando o mundo —ia sozinho na padaria, depois na rua do lado, no bairro vizinho, mais longe, mais longe, e mais um pouco.

Marcelino Melo, o Nenê, tinha 14 anos quando chegou na quebrada, que é como se pode chamar a vizinhança na periferia. E, no Campo Limpo, na zona sul da capital paulista, muita coisa era diferente de Carneiros.

Se lá na cidade antiga todo mundo se conhecia, aqui tinha muita, muita gente. E não eram só as pessoas que eram novas —foi em São Paulo que Nenê comeu pela primeira vez pizza e hambúrguer, e foi aqui a primeira vez que ele viu morangos.

Nem tudo foi legal nesse começo. De tanto ter seu sotaque nordestino ridicularizado na escola, Nenê trancou a boca e por três anos só falou o essencial. Começou a achar cruel a mudança de cultura, e foi tentando excluir memórias antigas para trocá-las por coisas novas, para ver se era incluído nas turmas.

Essa história já tem quase 15 anos. Depois de trabalhar como entregador de água, ajudante em lava-rápidos, mecânicas, restaurantes e hortifrutis, Nenê hoje é artista. Seu principal talento? Lembrar as coisas.

Em um perfil com 190 mil seguidores no Instagram, ele mostra o resultado de um projeto que vem fazendo há cerca de um ano: o Quebradinha, em que Nenê faz miniaturas de casas, comércios e outras construções típicas da quebrada.

"O Quebradinha surge com a intenção de eternizar as memórias, para que eu olhe e não me esqueça. Pego as coisas de que eu me lembro lá da rua em que eu vivia correndo e em que brincava com meus amigos, e vou criando um coletivo. Não é só sobre mim, não só sobre o outro, é sobre todos nós", resume.

Nenê calcula que já tenha criado quase 15 casinhas. Para construí-las, ele só usa material reciclável. As caixinhas d'água, por exemplo, são tampinhas de desodorante pintadas. As telhas vêm do papelão, os tijolos são de massa de modelar, o cimento é papel machê. O lixinho nos sacos é lixinho mesmo, com madeira, palito, besteiras.

"Adoro palitos, o que vou andando na rua e vejo eu pego. Tenho um monte, é hashi, palito de churrasco. Só os de dente que eu comprei, porque aí seria demais", brinca.

"Tem gente que fala que com maquete eu devia ser bom na infância, mas nunca fiz maquete em lugar nenhum, nem na escola, lá não tinha dessas coisas. Essa habilidade de conseguir reproduzir com verdade as coisas é uma coisa meio ancestral, eu sou a continuação dos meus antepassados."

Em Carneiros, ainda criança, Nenê fazia com terra e pedacinhos de tijolos empilhados algumas casinhas com a estética do lugar em que nasceu. "Fazia portinhas, estradinha, ficava brincando com carrinho. Fazia até o encanamento da casa. As casinhas de hoje estão sendo feitas de 1994 pra cá, elas maturaram para sair isso", analisa.

Atualmente, oito obras suas estão em exposição gratuita no Centro Cultural São Paulo (R. Vergueiro, 1.000, Paraíso). Entre elas, tem um sobrado de três andares com uma loja de salgados embaixo, com telhado feito em homenagem ao avô de Nenê, e uma casinha montada sobre uma enxada cheia de nomes de mulheres, para mostrar a força feminina nas favelas, segundo o artista.

A casinha mais recente, batizada de Quebradinha Sete Ervas, foi essa semana para o Museu da Cidade (R. Roberto Simonsen, 136, Centro), onde fica até julho.

Em média, cada casinha leva quatro meses para ficar pronta. Todas as ideias vêm de Nenê, que até já aceitou produzir miniaturas para algumas marcas, mas não cria casinhas sob encomenda. "As pessoas me perguntam muito se eu faria as casas delas a partir de fotos, mas não rola. Acho que demoraria e quebraria meu processo criativo", explica.

Há um ano, Nenê saiu da casa da mãe e foi morar sozinho. Continua no Campo Limpo, e toda semana visita a antiga casa. Dia desses, levou a mãe para passear. Era domingo, e os dois foram juntos à exposição do Quebradinha, antes de saíram para jantar.

"Fomos só eu e ela, o restaurante era 'quase-chique'. Não era o do [Erick] Jacquin, mas era uma comida que a gente não come com tanta frequência", diz Nenê, que comemora o fato de sua arte agora ser o seu sustento. "Dá pra pagar as contas e até comer pizza e hambúrguer de vez em quando", brinca.

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