Aporofobia, nome da aversão a pessoas pobres, é ensinada às crianças pelos adultos

Padre Júlio Lancellotti idealiza dois livros infantis sobre o tema e fala a respeito de maneiras para se lidar com o preconceito

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São Paulo

Subir o vidro do carro quando alguém se aproxima ou trocar de calçada se uma pessoa vem na outra direção são atitudes comuns nas cidades grandes. E, de tão comuns, elas podem parecer corretas —até porque, quem quer se arriscar diante de uma situação de perigo?

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Ilustração do livro 'Aporofobia', feito em parceria com o padre Júlio Lancellotti - Divulgação

Mas será que estamos falando de perigo real? As pessoas que se aproximam dos carros ou dos pedestres são sempre criminosos violentos, ou elas são só… diferentes? Ter medo de pessoas empobrecidas ou em situação de rua, ou simplesmente não gostar delas, é um sentimento que tem nome: aporofobia.

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Blandina Franco e o ilustrador José Carlos Lollo fizeram duas obras com este tema - Divulgação

E, por mais que essa seja uma palavra complicada e pouco falada, muita gente sabe como é se sentir assim, desconfiado e desconfortável diante de quem tem menos oportunidades na vida. Não é algo bonito de se admitir, realmente, mas é um assunto de que se precisa falar.

Para debater isso, a escritora Blandina Franco e o ilustrador José Carlos Lollo fizeram dois livros com o tema. "Aporofobia" já está disponível nas livrarias, e "Os Pombos" está em pré-venda no site da editora.

"Acho que todo mundo já passou por uma dessas situações, a gente passa pelos moradores de rua, os vê espalhados e vê as coisas acontecendo, algumas vezes nós mesmos nos comportamos dessa maneira", diz Blandina, contando que a ideia dos projetos partiu do padre Júlio Lancellotti, que cuida de pessoas em situação de rua e as apresentou a ela e a José.

"Não foi difícil encontrar situações de aporofobia, mas deu um certo trabalho escolher dentre tantas. Algumas foram escolhidas pelos próprios moradores de rua, como por exemplo a frase 'Eles são uns infelizes', que foi uma sugestão de um deles", completa o ilustrador.

Em "Aporofobia", há várias colocações como esta. De um lado, pessoas apontam para três personagens e dizem que eles são fedidos, que sujam a cidade, que fingem sentir fome e que só estão ali porque fizeram "más escolhas". Uma coisa curiosa é que não há diferenças visíveis entre os dois grupos, exceto que os que ouvem as ofensas vão ficando cada vez menorzinhos.

Padre Júlio Lancellotti, que cuida há anos de pessoas em vulnerabilidade social - Marlene Bergamo/Folhapress

"Essa visão de que eles fizeram más escolhas já é aporofóbica", diz padre Júlio Lancellotti. "Más escolhas dependem de quem olha a escolha, para achar se ela é boa ou má. Em geral, as pessoas escolhem coisas que elas acham que são boas para elas, mas que depois podem se revelar más. Acontece na vida de todo mundo. Só que, como eu não gosto daquelas pessoas, digo que elas fizeram más escolhas."

E esse "não gostar" é gratuito, vem "do nada", porque estas pessoas que são pobres e às vezes precisam ir viver nas ruas nem conhecem aqueles que as ofendem, que dirá terem feito algum tipo de mal para eles. Padre Júlio acha que quem não gosta dos pobres não gosta deles porque eles são "diferentes".

"E, além de ser diferente, essa pessoa não me gera confiança. Eu tenho medo dela. Eu não a conheço. Os grupos familiares ensinam as crianças a não gostarem daquelas pessoas. Dizem para não brincar com aquelas crianças, não ficar lá com eles, tomar cuidado", afirma. "Como não faz parte do mundo em que você vive, você tem medo. E esse medo acaba gerando ódio."

É claro que aquele homem pode ser fedido. Mas aí o adulto diz para a criança que ele é fedido, mas não diz por que. É como se ele tivesse escolhido estar daquele jeito

Padre Júlio Lancellotti

voluntário dos direitos humanos

Padre Júlio convive com pessoas em situação de vulnerabilidade. Ele sabe, portanto, como elas podem chegar à ruína material e, em muitos casos, não ter acesso à comida (e por isso reviram os sacos lixos), à água potável (e por isso pedem ajuda para se hidratar) nem à água para se lavar (e por isso podem ficar dias sem tomar banho).

"É claro que aquele homem pode ser fedido. Mas aí o adulto diz para a criança que ele é fedido, mas não diz por que. É como se ele tivesse escolhido estar daquele jeito. Só que o motivo é que ele não tem acesso a sabonete e água. Ter que dar uma explicação me questiona e coloca o foco em mim, e isso pode ser desconfortável", diz Júlio.

Pessoas acabam tendo que ir viver nas ruas por muitos motivos: dificuldades econômicas, de relacionamento com os outros membros da família, violência etc. "São razões muito variadas. Mas o motivo, em geral, é alguma perda. São pessoas que vão perdendo. Perdendo afeto, amizade, laço, condições de subsistir", afirma o padre.

Para ele, as crianças não nascem aporofóbicas —elas aprendem isso com os adultos. E não é um ensino com palavras, mas com atitudes. E, mesmo quando são adultos que têm consciência sobre as desigualdades do mundo, Padre Júlio acha que eles podem sentir dificuldade de explicá-las aos mais novos.

A solução para este preconceito, ele diz, começa por questionar a ordem das coisas. "As crianças devem pensar por que elas podem tomar um sorvete caro e a outra criança não pode nem chupar o palito. Refletir sempre. Por que nós achamos que pensar do jeito que nós pensamos é o certo?", sugere.

"Nós lutamos contra a aporofobia sempre que não achamos que a situação é imutável do jeito que está. Porque ela não é, a gente sempre pode mudá-la."

Para a escritora Blandina, seus livros podem ajudar a abrir conversas sobre o sentimento da aporofobia. "Falar sobre esse preconceito é o primeiro passo para mudarmos nosso pensamento e enxergarmos essas pessoas em situação de rua como realmente são: pessoas", diz.

"Entendendo o que acontece com eles, o que eles sentem, coisas que ninguém se preocupa muito em pensar e entender, podemos ter um olhar menos preconceituoso e mais humano com relação ao problema."

Aporofobia

  • Preço R$ 9,90 (48 páginas)
  • Autoria Blandina Franco e José Carlos Lollo
  • Editora Companhia das Letrinhas

Os Pombos

  • Preço R$ 54,90 (56 páginas)
  • Autoria Blandina Franco e José Carlos Lollo
  • Editora Companhia das Letrinhas

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

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