São Paulo, domingo, 26 de dezembro de 1999




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Nova fé altera a rotina do fiel

O INDIVÍDUO SÓ ADERE A OUTRA RELIGIÃO QUANDO ELE TRAZ UMA MUDANÇA IMPORTANTE PARA SUA VIDA COTIDIANA, REORDENANDO NECESSIDADES AFETIVAS, SOCIAIS, FAMILIARES E CARÊNCIAS PESSOAIS

É difícil imaginar que um católico possa, em diferentes períodos de sua vida, deixar de perceber e se contaminar com as variações que sua religião é capaz de lhe oferecer. Muitas histórias-de-vida mostram como diferentes vertentes religiosas podem se sobressair em face de diferentes momentos por que passa o indivíduo em sua trajetória, momentos que se associam a aspectos positivos ou negativos da carreira familiar e profissional, das condições de saúde, das experiências afetivas, das referências de reconhecimento social.
Os relatos apresentados mostram que escolhas religiosas dependem muito de certos fatos da biografia de cada um, havendo momentos em que a religião parece preencher certas lacunas deixadas pela própria trajetória de vida, restabelecendo uma certa regularidade na vida cotidiana, interrompida não somente por doenças, perdas e tragédias pessoais, mas pelo próprio esgotamento de alguns ciclos vitais.
Mas, como de certo modo o demonstrou Maria Júlia Carozzi (5), a conversão ou adesão religiosa é um processo complexo, que envolve uma primeira aproximação com a nova religião por motivo particular, e que acaba, quando acontece, envolvendo o novo seguidor por meio dos mais diferentes ardis e estratagemas.
O converso não antecipa sua nova religiosidade: sua escolha é sempre encaminhada em função de determinados aspectos da religião, em geral pragmáticos. Com o tempo vão se aprendendo as regras da religião e com elas as obrigações e vantagens do seguidor.
Mudar de religião não significa apagar a religião anterior. Tudo indica que cada mudança agrega uma nova identidade religiosa, cujo sentido é completado na interação com a identidade religiosa anterior, à qual se pode voltar definitiva ou temporariamente.
Para pessoas carentes de educação formal, uma nova religião pode significar um enriquecimento subjetivo, um ganho em repertório de avaliação da própria vida, independentemente das distorções que as novas concepções de mundo possam acarretar. De todo modo, a religião anterior é sempre uma marca importante que o converso costuma enfatizar quando pensa a respeito de sua biografia. Diferentes escolhas sucessivas podem ser pensadas como camadas, como etapas das quais o converso pode fazer uso para interpretar sua sorte na vida.
A primeira conversão, talvez a mais difícil e dramática, parece significar a descoberta dessas qualidades de suposto enriquecimento subjetivo e às vezes de mudança objetiva das condições de vida, descortinando-se para o consumidor religioso outras possibilidades, outras crenças.
Religiões que nunca foram exclusivistas, por serem subalternas _como a umbanda, o catimbó, o candomblé e, em menor grau, o kardecismo_, têm representado para o católico, a religião majoritária, um algo mais que se agrega à crença anterior, mas que não a anula, de modo que espíritas e afro-brasileiros continuam sendo católicos. Sua crença inicial não é substituída nem rejeitada, mas ampliada por outras fontes, que o dotariam de novos elementos de ajuda na luta pela sobrevivência.
Tal simultaneidade não se verifica quando a nova religião nega a anterior, como as religiões evangélicas em sua contraposição ao catolicismo, mas a camada religiosa anterior e a atual aparecem como uma sequência na vida do converso em que a adesão à outra religião significa para este crente uma mudança de vida, assim como uma conquista, um avanço.
Na maioria dos casos, uma nova religião pode representar objetivamente mais retrocesso que avanço na vida do converso, submetendo-o a crenças que o afastam das fontes de conhecimento universal, embotando sua consciência e fazendo-o aceitar a necessidade de espoliação pública de sua intimidade, sem contar novos compromissos financeiros que não raro é obrigado a assumir, desenhando-se um conjunto de resultados que pode reunir mais perdas do que ganhos. Mas o converso não se dá conta disso.
O converso só adere à religião quando ela traz alguma mudança importante para sua vida cotidiana, reordenando necessidades afetivas, sociais, familiares, carências interiores e muitas outras coisas que estão longe de se caracterizarem como motivações religiosas. O modo como a religião interfere na vida do novo crente responde pela concretização da adesão. Por isso toda a religião quer demonstrar que é capaz de oferecer uma nova vida, plena de realizações, desenvolvendo quase todas elas ritos de batismo e renascimento, acompanhados de exorcismo e outras práticas de negação da crença anterior.
Mesmo quem entra para uma religião por motivo pouco religioso, como acompanhar um parente, resolver uma pendência ou encontrar uma cura logo é compelido pela religião a descobrir profundas motivações interiores de natureza existencial, de modo que possa ser convencido de que uma força sobrenatural orienta sua inclusão num grupo que ele não escolhe, mas é escolhido.
A favor do converso de hoje joga a possibilidade de que ele pode abandonar a religião a qualquer momento, embora cada versão religiosa esteja convencida, e procure convencer, de que ela é a única verdade, muitas delas ameaçando com a perdição, o castigo e o caos os que dela se desviam.
Para aprisionar os que chegam apenas em busca de pequenos favores, a religião do converso terá que oferecer muitas vantagens, algumas facilidades e, no mínimo, alguma nova maneira de o indivíduo ver-se a si mesmo e à sua condição de vida, num mundo em permanente transformação. Para isso a religião também tem que mudar, diversificando suas formas e expandindo suas ofertas.

Reginaldo Prandi
, 53, é professor titular de socieologia da Universidade de São Paulo e autor de "Os Candomblés de São Paulo" (Hucitec, 1991), "Herdeiras do Axé" (Hucitec, 1996), "Um Sopro do Espírito: Reação Conservadora do catolicismo Carismático" (Edusp e Fapesp, 1997) e, em co-autoria com Antonio Flávio Pierucci, "A Realidade Social das Religiões no Brasil" (Hucitec, 1996)


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