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Depoimento: Fui seduzido pela Nova York de Tom Wolfe

A cidade de 'A Fogueira das Vaidades' era de defeitos, vícios e tentações

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Tom Wolfe em Nova York, em 1988
Tom Wolfe em Nova York, em 1988 - Angel Franco/The New York Times

Não bastava ser Nova York. Tinha que ser a Nova York de Tom Wolfe. Para a minha geração conhecer, passear, morar, trabalhar —ou apenas sonhar: essa era a cidade do nosso imaginário, graças a um livro fundamental de Tom Wolfe: “A Fogueira das Vaidades”.

Não era uma cidade bonita. Ela ainda não havia se recuperado da trágica decadência que veio com os anos 70 e os exageros da década seguinte se distribuíam por seus habitante, enraizados como as famosas árvores gigantescas nas ruínas de Angkor, no Camboja.

Mas se essa Nova York era feita de defeitos e vícios, era também de tentações. E era para lá que um jornalista ainda jovem, a quem a idade ainda não tinha ensinado que a sede de cultura é insaciável, queria ir.

Era 1989. Eu havia passado praticamente todo o ano anterior desbravando “Fogueira” no original em inglês —uma época em que minha fluência no idioma sequer me permitiria atravessar a ponte do Queens para Manhattan sem receber um olhar torto de um dos personagens que Wolfe criou no seu livro. E agora eu queria conquistá-la. 

“Mesmo que eu não conhecesse Nova York e, por isso, estivesse interessado em ganhar a bolsa de trabalho para morar lá, o livro tem elementos suficientes para seduzir quem se interessa um pouco por comportamento”, dizia minha carta de inscrição para um trabalho na Folha como correspondente-júnior.

O “sênior”, claro, era Paulo Francis —que com seus textos de então havia me influenciado a ler “Fogueira” com urgência. 

Teria Wolfe me ajudado a ganhar a vaga? Uma vez que cheguei lá, não pensava mais nisso. Eu já fazia parte daquela Nova York. Muito perifericamente, é verdade. Mas, inspirado por Wolfe, lá fiz meus primeiros esboços de personagens irresistíveis para minhas histórias e matérias —fossem eles construídos (na minha ficção) ou (nas minhas reportagens) simplesmente fotografados no seu cotidiano de maneira tão precisa e sedutora que era como se eles tivessem saído de uma fértil imaginação. 

A confusão entre esses dois mundos —o da observação e o da invenção— foi cristalizada com perfeição por Wolfe em “Fogueira”. Sherman McCoy, o reverendo Bacon, Larry Kramer: seus personagens eram bons demais para serem inventados. E caricatos demais para serem reais. 

E por isso eles gravitam nesse universo único de Wolfe. O big bang certamente veio da não ficção —que nos deu clássicos como “Os Eleitos". “Sangue nas Veias”, seu último romance, certamente foi a supernova. E “Fogueira” vai brilhar sempre como um grande sol inspirador.  

Aquela Nova York do livro já não existe mais —mudou-se para Washington. Trump, filho legítimo da sociedade que queimava com suas vaidades na fogueira renasceu das cinzas e hoje é presidente dos Estados Unidos. A ideia de que, aos 88 anos, Tom Wolfe teria ido cedo demais vem da tristeza de perceber que ninguém melhor que ele poderia escrever uma crônica do que os americanos vivem agora.

Zeca Camargo é colunista da Folha,  apresentador e autor de livros como '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil' (2006).

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