Debate na TV Globo motiva performance com atores que repetirão falas de candidatos

Performance idealizada pelo artista Nuno Ramos terá falas de políticos e bailarina rodopiando

Bailarina e atores em ensaio da performance 'Aos Vivos (Dervixe)', do artista visual Nuno Ramos

Bailarina e atores em ensaio da performance 'Aos Vivos (Dervixe)', do artista visual Nuno Ramos Bruno Santos/Folhapress

Fernando Tadeu Moraes
São Paulo

Nuno Ramos está em estado de emergência. A crise política e institucional dos últimos anos, as eleições presidenciais e o avanço da extrema direita no país fizeram soar os alarmes internos do artista visual e escritor de 58 anos. “Tenho a sensação de que podemos realmente perder o país; de que alguma coisa emparedou o sistema institucional”, diz.

É dessa paisagem turbulenta e abismal que Ramos extraiu a matéria-prima de seus novos trabalhos, os mais explicitamente políticos de três décadas de produção artística.

Para compor a série de performances teatrais “Aos Vivos”, Ramos diz ter buscado se “apropriar, botar a mão nessa loucura que estamos vivendo, essa espécie de desinibição do pior, que veio com força sem limite”.

Tendo como mote os debates televisivos dos candidatos à Presidência, o artista explora e refina, nos novos trabalhos, um conceito usado neste ano em “A Gente se Vê por Aqui”, em que dois atores recebiam e reproduziam simultaneamente a grade de um dia inteiro de programação da TV Globo.

Agora, os candidatos serão representados por atores, que receberão ao vivo o áudio do debate e o transmitirão, em tempo real, à plateia. Assim, as performances terão a duração exata das contendas políticas. A primeira ocorrerá nesta quinta-feira (4), às 22h, no Galpão do Folias, em São Paulo, durante o debate da Globo. As demais, num eventual segundo turno das eleições.

Em cada uma das três obras da nova série, Ramos introduz um elemento exógeno que “dialoga” com o discurso dos candidatos: uma dervixe, figura da vertente sufi do islamismo, trechos da peça “Antígona”, de Sófocles, e falas do clássico “Terra em Transe”, de Glauber Rocha.

O uso de métodos mais teatrais —outra novidade da fase atual do artista— se dá de maneira crítica, por exemplo, por meio do questionamento da ideia de representação. “O real está tão forte neste momento, que não basta representá-lo, é necessário pegá-lo enquanto as coisas estão acontecendo”, afirma. Daí a proposta de captar a palavra enquanto ela ainda paira no ar, viva.

Tal expediente, como seria de imaginar, impõe não poucos desafios aos atores. “É um negócio de louco e ao mesmo tempo um exercício maravilhoso, pois eu não tenho tempo de ter uma opinião sobre o ‘texto’”, diz o ator Celso Frateschi, que participa da performance.

“Quando o Nuno nos coloca para reproduzir as palavras de um debate, isso promove um distanciamento que abre a possibilidade de uma visão crítica sobre ele. O conteúdo entra e sai com um mínimo de filtro —o meu corpo e minha voz, basicamente—, mas que já é suficiente para relativizar a coisa.”

Os atores foram instruídos a evitar o cômico e o grotesco na representação dos candidatos. Em um ensaio da primeira performance, Ramos pediu a eles que tentassem “pegar o aroma, talvez o ritmo, a densidade da fala dos políticos, o que é diferente da cópia das pequenas partes que, exacerbadas, criam a sensação de caricatura”.

Na primeira ação da série, os atores-candidatos ficarão dispostos em círculo. No meio deles, uma bailarina representando uma dervixe ficará girando em torno de seu eixo durante todo o debate. “Um círculo com um movimento circular dentro dele”, resume o artista. “Pensei num pássaro preso por paredes de vidro, na oposição ocidente-oriente.” Músicos tocarão ao vivo melodias sacras sufis.

A segunda performance ocorrerá na Casa do Povo, durante o penúltimo debate do segundo turno. Nela, os intérpretes receberão o áudio do debate em um ouvido, e, em determinados momentos, trechos de "Antígona" no outro.

Por fim, no último debate da eleição, no dia 26, a performance ocorrerá no Instituto Moreira Salles de São Paulo. O ato será pontuado por falas de dois personagens do filme “Terra Em Transe” —Paulo Martins, jornalista e poeta idealista, e Porfírio Diaz, um político conservador.

“No filme temos a autoindulgência do Paulo, que faz algo como um acerto de contas da esquerda, mas também a sua agressividade. Acho que essas duas tonalidades vão estar presentes no debate. E o Diaz é o Bolsonaro. No final do filme ele brada: pela harmonia universal dos infernos chegaremos a uma civilização.”

A interação das falas dos personagens e dos políticos produz uma espécie de curto-circuito, diz a atriz Grace Passô, que integra a performance. “A poética dos personagens do Glauber acaba servindo de comentário ao discurso dos candidatos.”

Ramos acredita que em momentos de crise, como o atual, a arte “precisa dar uma pirada, no sentido de se radicalizar, pois as energias estão todas mais explícitas e acessíveis do que em períodos de maior tranquilidade”. Tal radicalização já foi responsável, no passado, por alguns dos trabalhos artísticos mais potentes já produzidos no país.

Ele dá como exemplo a arte da época do AI-5, baixado em 1968, que deu poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente quem fosse considerado inimigo do regime militar.

“O cinema marginal produziu coisas impressionantes nessa época. O Hélio Oiticica está acontecendo ali, a Lygia Clark também, o Tunga está vindo, tem ainda o Cildo Meireles. Na canção você tem uma sequência incrível: o 'Transa', do Caetano, 'Expresso 2222', do Gil, o álbum branco do João Gilberto, o 'Estudando o Samba', do Tom Zé, os Novos Baianos. Até o Raul Seixas foi bom nessa época”, brinca.

Seria um erro, entretanto, estabelecer uma relação de causa e efeito entre tais momentos históricos e a qualidade das obras, adverte o artista. “Mas eu noto que em regimes de explicitação, como o que vivenciamos, os artistas se tornam mais agudos, querendo trabalhar e se fazer no outro, o que pode ser um catalisador de grandes obras.”

O risco, diz Ramos, seria regredir a uma “estupidez das esquerdas do passado de achar que a arte deve reagir dessa ou daquela maneira ao contexto, pois pressupõe que alguém saiba como essa reação deva ser, algo que só a própria arte pode responder”.

Segundo ele, muitas vezes a arte explicitamente política não tem nada de política, atuando como mera transmissora de valores. “Não existe um caminho certo para se produzir arte num tempo como o nosso”, diz. “O demônio da arte é o demônio da autonomia.”

O próprio artista é exemplo disso. Ao mesmo tempo em que concebe e executa as novas performances políticas, Nuno Ramos conclui uma série de pinturas abstratas de grandes dimensões que passam distantes do som e da fúria que grassam no país.


Sessões de  'Aos Vivos'

Debate nº 1
Galpão do Folias, r. Ana Cintra, 213, Santa Cecília. Qui. (4), às 22h. Ingr.: R$ 10. Lotação 100 lugares

Debate nº 2
Casa do Povo, r. Três Rios, 252, Bom Retiro. Dom. (21), às 22h. Ingr.: R$ 10. Lotação 100 lugares

Debate nº 3
Instituto Moreira Salles, av. Paulista, 2.424, Consolação. Sex. (26), às 21h30. Ing.: R$ 20. Lotação: 145 lugares

A série será também transmitida via streaming no YouTube, no canal Aos Vivos

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