Nick Cave chega a São Paulo com turnê moldada pela tragédia da morte do filho

Arthur tinha 15 anos quando caiu de um penhasco no Reino Unido, em 2015

O cantor e compositor australiano Nick Cave, que se apresenta com a banda Bad Seeds em São Paulo

O cantor e compositor australiano Nick Cave, que se apresenta com a banda Bad Seeds em São Paulo Divulgação

Silas Martí
Nova York

​O encontro foi numa antiga sinagoga, mas o clima era de confessionário.

"A verdade terrível sobre a morte do meu filho é que boas coisas aconteceram desde que ele morreu", dizia Nick Cave, de preto, à multidão de fãs que abarrotava o salão de vitrais coloridos no Brooklyn nova-iorquino. "Não sei o que vem da dor e da tristeza, mas isso é importante para entender como a vida é valiosa e instável. É o conhecimento da fragilidade das coisas."

Arthur, um dos quatro filhos do músico, tinha 15 anos quando caiu de um penhasco em Brighton, no Reino Unido. Ele foi encontrado com ferimentos graves numa trilha ao pé das rochas e não resistiu.

O episódio de três anos atrás moldou "Skeleton Tree", o último disco de Cave, e sua atual turnê, que chega agora a São Paulo cinco meses depois daquela série de encontros em Nova York, marcando o fim do luto do compositor.

 

Mas, tanto nas canções do álbum quanto nas novas aparições, o artista australiano ainda parece mergulhado na angústia fuliginosa que embala toda a sua obra. É um misto de dor e transcendência, como se toda a violência da vida passasse por um filtro místico, às vezes erótico, antes de tomar a forma de verso.

"Minhas canções estão cheias de versos sem valor inerente, é um território de ansiedade. E sinto um frio na barriga quando vejo que os versos causam um efeito juntos", afirma Cave. "Quase tudo que escrevo é um exame do que acontece na minha vida, ao meu redor, mas demora para os eventos da vida e o significado de todos eles alcançarem as palavras."

O ritmo, no entanto, vem se acelerando. Algumas das canções mais recentes, como "Jesus Alone", um visceral lamento entre o gospel e o punk, têm referências quase literais à morte do filho. Mesmo as faixas do passado, como "Into My Arms" e "The Weeping Song", soam atualíssimas à luz da tragédia.

E Cave, antes dos shows tradicionais que vem fazendo nessa turnê de retomada, esmiuçou tudo isso diante do público em encontros com os fãs mais ardorosos —esse em Nova York se estendeu por horas e lembrou uma espécie de terapia em grupo.

"Não sei bem o que estou fazendo aqui, mas continuar a fazer música é uma questão de vida ou morte para mim", ele dizia no palco. "Tento prestar atenção no fato de estar vivo. Dizem que o estado de depressão é uma coisa espiritual, mas não é. O melhor lugar do mundo é estar preso ao calor que vem da plateia."

E Cave, sem esconder a saudade que sentia dos palcos, reage a esse calor alternando entre a frieza clínica de quem disseca os próprios versos em explanações cerebrais e momentos de entrega ao piano, como se estivesse compondo sozinho no porão de sua casa.

"Nunca reclamaram da falta de intimidade. Estamos mais próximos do público do que nunca", diz o músico. "Tocamos coisas muito calmas e coisas capazes de arrancar cabeças. É quando estamos ao vivo que as músicas se tornam reais. Você vê a plateia se transformar pelo contato físico diante de seus olhos."

Talvez a chave de sedução das músicas desse artista com mais de três décadas de estrada seja mesmo o trânsito entre o sagrado e o profano, sua investigação da fé aliada à alta voltagem sonora do rock.

"Existe um desconforto por baixo das coisas que eu escrevo", diz Cave. "A violência é uma força intuitiva que atravessa as minhas canções. É um acidente, uma ideia que se expande do nada e se torna monumental, um ruído cerebral que me leva à epifania."

Nesse lampejo amplificado pela música, o artista acaba escancarando os dois lados incongruentes de sua persona. "É um dever sagrado ser o mais pornográfico possível."

Shows

Nick Cave & The Bad Seeds

Rock
até R$360

O cantor, compositor, ator e roteirista australiano chega ao Brasil com seus colegas Mick Harvey e Blixa Bargeld e apresenta sucessos da banda formada nos anos 1980 que se consolidou como um dos nomes mais influentes do rock alternativo. No repertório, aparecem músicas como

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.